Eu já esperava muitas coisas quando me sentei para assistir ao filme Anatomia de uma Queda. Eu já esperava que ele iria mexer com as minhas estruturas, mesmo ser saber como.
Eu só não esperava que ele seria tão gatilho para mim.
Porque, ao longo da história, o que vemos não é apenas a busca pelos fatos. A promotoria não está tentando só entender o que aconteceu naquela manhã e porque Samuel, o marido de Sandra, está morto.
O que rola é, na real, o julgamento de cada aspecto de sua vida e a tentativa de pintá-la como uma pessoa terrível.
A sua sexualidade, a sua obra literária, sua moralidade, seu relacionamento, suas escolhas e até sua capacidade de falar em francês. Tudo, absolutamente tudo sobre Sandra está em jogo para descobrir se ela matou ou não o seu marido - e vale tudo para colocá-la como a vilã da história.
Em dado momento, quando uma briga do casal é exposta no tribunal, meu companheiro até comentou o quanto isso era um tiro no pé da promotoria. O quanto aquele diálogo, sem querer, mostrou um lado diferente do marido e afetou a teoria de um homem vítima de sua esposa maquiavélica.
Mas, como eu disse a ele, talvez isso acontecesse em um mundo ideal. Em uma realidade em que gênero não seja uma questão, talvez isso fosse mesmo um tiro no pé da acusação.
Só que Anatomia de uma Queda não se passa em um mundo ideal. E, no nosso mundo, Sandra continua sendo uma mulher. Uma mulher que assumiu ser falha, que não se desculpou por suas frustrações e amarguras e nem se arrependeu dos seus pecados.
E isso, por si só, já é um crime.
Quando as coisas não são o que parecem
Ainda me lembro do espanto que senti ao descobrir que o termo “gossip”, ou “fofoca” em inglês, nem sempre teve esse significado.
Em Mulheres e caça às bruxas, Silvia Federici aponta que, ao longo do período medieval, “gossip” se tratava apenas de uma reunião entre mulheres, nada mais. Sabe aquele barzinho maroto ou o famoso cafezinho das comadres? Pois é, era apenas isso.
No entanto, com a política de Inquisição e a nova ordem social que surgia, esse tipo de reunião tomou todo um novo contexto. A nova ideologia imposta foi transformando a opinião pública sobre a figura da mulher e, com isso, o tal café ou barzinho passou a ser algo um tanto perigoso.
Isso porque, visando destruir o pensamento mágico da época e o poder social feminino que ele gerava, reforçou-se a ideia de que, no fundo, mulheres seriam seres ardilosos e diabólicos. Que seus praguejos e reclamações eram os motivos dos infortúnios de toda uma vila, gerando um pânico moral absurdo. E que, consequentemente, nada de bom poderia vir de uma reunião entre elas.
Por mais que não tenha sido inaugurada ali, a figura da bruxa invadiu o imaginário social e assumiu esse papel da mulher perigosa e insubordinada que conhecemos até hoje. E que, por representar um risco tão grande à vida pública, devia ser condenada - e ainda servir de exemplo para as outras.
Com isso, o cafezinho entre comadres se tornou sinônimo de inveja, maldizer e problemas. “Gossip” passou a ser algo pejorativo, assim como qualquer sinal de mulheres juntas. E, para evitar a tortura da Inquisição, elas não tiveram outra opção se não ficarem confinadas ao ambiente doméstico e fazerem o seu trabalho de maneira não remunerada.
Que conveniente, não?
Em O Calibã e a Bruxa, inclusive, Federici aponta o quanto o terror construído ao redor da figura da bruxa foi fundamental para estabelecer uma nova lógica social que, através da fogueira, trouxe um novo significado para feminilidade e permitiu a base material para o surgimento do Capitalismo. Ela diz:
(…) “surgiu um novo modelo de feminilidade: a mulher e esposa ideal — passiva, obediente, parcimoniosa, casta, de poucas palavras e sempre ocupada com suas tarefas. Esta mudança começou no final do século XVII, depois de as mulheres terem sido submetidas a mais de dois séculos de terrorismo de Estado.” (p. 205)
Acho que já deu pra entender que a Inquisição, enquanto política terrorista de Estado, foi fundamental para criar um terror moral e estabelecer novos papéis sociais. Já deu pra sacar também que, além de questões étnicas e religiosas (pessoas judias e mulçumanas foram grandes vítimas da fogueira, vale lembrar), o gênero e a sexualidade foram moldados por essas políticas e impactaram diretamente na vida das mulheres da época.
Mas já parou para pensar no quanto ainda sentimos as consequências de toda essa construção e moldes? Em como ainda somos impactados por esse imaginário social e, sem percebermos, também criamos nosso próprio tribunal e condenamos a galera à fogueira?
De onde vem tanto incômodo?
No julgamento de Sandra, em Anatomia de uma Queda, o terapeuta do marido falecido é uma das testemunhas da acusação. E, dentre tudo que é discutido neste momento, o que mais me chama atenção é como ele a define como uma mulher castradora.
Ele nunca a conheceu de fato. Mas, a partir das perspectivas do marido, é categórico em afirmar que o jeito impositivo e determinado dela arruinou a vida de Samuel. Sandra ainda argumenta o quanto a visão dele é apenas um dos aspectos de uma relação e uma verdade muito mais complexa, o que acho realmente válido.
Mas o que mais me pega nisso tudo é ver o quanto uma mulher que se impõe é tão ameaçadora a ponto de ser chamada de “castradora”.
É como se Samuel não tivesse vontade própria ou poder de agência. É como se Sandra, ao se colocar e não arredar o pé, não pudesse ser mais do que uma megera manipuladora. Afinal, onde já se viu uma mulher que sabe o que quer e não se cala sobre isso? Onde já se viu uma mulher que não aceita ser bela, recatada e do lar?
E não estou aqui falando que essa personagem é uma pessoa perfeita e sem defeitos. Não estou negando que ela tem os seus problemas e seus traços tóxicos - aliás, nem ela mesma faz isso.
O ponto é que, no fundo, Sandra é só mais uma mulher real. Uma mulher que briga, que estabelece limites, que perde a compostura e se amargura da vida. Uma mulher que comete erros e é “difícil de lidar”. Uma pessoa falha, assim como tantas de nós.
E esse é o grande problema. Porque, depois de séculos de fogueira e tortura, aprendemos na marra o que a sociedade espera de nós - e realidade, infelizmente, não está nessa lista.
Retomando O Calibã e a Bruxa, a autora traz o quanto a demonização da sexualidade feminina criou um medo generalizado nos homens e aumentou ainda mais a cisão entre gêneros. Uma vez que as mulheres foram pintadas como diabólicas e perigosas, a nova lógica social instaurou um verdadeiro pânico nos homens, que acreditavam que elas fariam de tudo para enfeitiçá-los com sua bruxaria.
Por conta disso, qualquer coisa que uma mulher fazia era problemática. Tudo era passível de acusação de manipulação e satanismo, mesmo quando se tratava de pontos tão simples quanto um leite azedo ou um sentimento de raiva.
Federici diz:
A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista, redefinindo assim os principais elementos da reprodução social¹” (p. 294)
Agora pensa aqui comigo: essa história de que não dá pra confiar em mulheres porque elas são interesseiras, manipuladoras e ardilosas é só coisa da Inquisição? Essa ideia de que uma mulher é perigosa por não se adequar aos padrões de bela, recatada e do lar ficou só lá na época da fogueira? E a concepção de que uma mulher impositiva é castradora, vem só da caça às bruxas?
Lembrando que essa é uma pergunta retórica. É óbvio que já sabemos a resposta.
Um choque de realidade
Volto a pensar na narrativa de Anatomia de uma Queda e na Sandra. Penso em todos os pontos apresentados, em tudo aquilo que me incomoda em sua personagem e em como somos levados a questionar o que nos é apresentado ao longo da trama.
Nada nessa história é verdadeiramente claro. A única coisa da qual temos certeza é de que, no fim, esse filme não é sobre a resolução de um crime. Ele é, na real, sobre a realidade humana e o quanto ela é incômoda em tantos aspectos.
Diferente de outras narrativas por aí, nem Sandra nem Samuel são grandes vilões ou mocinhos. Por mais que a defesa e a acusação tentem nos convencer disso, nós, telespectadores, sacamos que o buraco é muito mais embaixo e que, na verdade, ambos são pessoas falhas e problemáticas à sua própria maneira.
E essa é a grande realidade da vida. No fundo, pessoas reais são muito mais complexas do que os grandes heróis em suas aventuras épicas. Pessoas reais erram, machucam, brigam, se amarguram, se frustram e, inclusive, tem dificuldade em lidar com os próprios sentimentos. Pessoas reais decepcionam e se sentem decepcionadas. Pessoas reais são apenas isso: pessoas.
A grande questão aqui é que, após muita tortura e fogo, a gente se esqueceu de que isso também é válido para mulheres. Que, diferente do que é pregado por aí, uma mulher que briga e se impõe não está sendo manipuladora ou ardilosa. Ela não está usando os seus poderem diabólicos para conseguir o que quer e “castrar” os homens.
Ela só está humana, nada mais.
Apesar de todos os anos que nos separam da caça às bruxas, não dá para negar o quanto a ideologia construída nessa época ainda reverbera em nossa atualidade e contamina as nossas percepções sobre o que significa ser mulher. Subserviência, castidade e silêncio ainda é o que esperam de nós, mesmo após tantos anos de luta. E, com esse trauma coletivo de que qualquer erro pode nos levar à fogueira, não é à toa que temos tanto medo de sermos falhas e reais.
Afinal, a Inquisição até pode ter acabado. Mas toda mulher sabe que, apesar de tantas conquistas, o tribunal de condenação ainda segue firme e forte - e pronto para nos pintar como bruxas a qualquer sinal de desobediência.
Um adendo
¹ Reprodução social é um conceito muito importante quando falamos sobre a manutenção da vida social e de trabalho doméstico não remunerado. E esse vídeo do Teze Onze, o R de Reprodução social, explica muito bem todo o conceito.
Além disso, queria trazer aqui também um outro texto que já escrevi sobre caça às bruxas e o livro de Silvia Federici, mas dessa vez falando sobre Madonna e Blonde Ambition Tour. Você pode conferir ele aqui: Do jeito que o diabo gosta.
Indicações da V
Vamos de mais recomendação de textos por aqui?
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Excelente texto, Virgínia! Compartilho a mesma percepção sobre o filme. Se matou ou não, é o que menos importa na história.
Vi o filme semana passada e ainda estou caindo