“É impressionante como os artistas ignoram a parte de vendas”, foi o que vi alguém comentando com um tom bem negativo.
E bom, eu quero dizer algo sobre o assunto.
Não vou nem entrar no fato de que isso veio de um anúncio e a pessoa estava vendendo um curso, então é óbvio que ela precisava chamar atenção para o seu produto.
Só que, além de que tudo virou uma eterna venda de cursos, queria mesmo é falar sobre como a gente continua culpando o mensageiro ao invés de olhar para o emissor.
Porque sim, os artistas costumam ignorar a parte comercial do negócio (ou não entender bulhufas do assunto). E sim, pode ser um tiro no pé quando você depende disso pra conseguir seu dinheiro.
Mas já parou pra pensar que existe um motivo válido pra isso?
Produtor e produto
Outro dia vi um vídeo de alguém mostrando como conseguia alguns bons dígitos em sua conta bancária sendo artista. E não demorei muito pra sacar que aquele pagamento não vinha da sua arte. Vinha do marketing.
A pessoa descrevia todo o seu processo e rotina de produção de conteúdo para diferentes canais, os ebooks e cursos feitos sobre como se tornar artista full time, a manutenção da sua loja online e sua estratégia de marketing para alcançar novos clientes.
E vi muito pouco sobre o seu real processo de criação artística.
Mais do que artista, a pessoa era dona de um negócio. E, por mais que essas coisas andem muito bem juntas (e precisam andar), o que se destacou nessa história toda foi que arte era o que ela menos fazia. Vender demandava muito mais tempo e esforço, e era o que realmente trazia algum nível de retorno.
E isso, querendo ou não, sobrecarrega e desgasta qualquer um.
Veja bem, eu não estou aqui falando que artista não deve aprender a gerir um negócio ou não ganhar dinheiro com sua criação. Pelo contrário, meu sonho é conseguir fazer uma carreira da minha arte e pagar meus boletos com isso.
No entanto, é preciso reconhecer que fazer arte, administrar um negócio, produzir conteúdos de divulgação, criar cursos e vender produtos são muitas demandas para uma pessoa só. E é por isso, inclusive, que costumam ser profissões separadas.
Ao menos na teoria, né?
Na atual situação de precarização em que vivemos, as coisas se misturam e os trabalhos se acumulam tanto que fica até natural esperar esse nível de sobrecarga. Se você é artista e não tá fazendo tudo isso por conta própria, o errado ainda é você.
E aí sua produção artística, que é o que você realmente tem interesse e motivação pra fazer, se torna a última tarefa da lista. Você só faz quando sobra tempo depois de ser vendedor, empresário, contador, blogueiro, marketeiro, designer, programador de site, professor e community manager. E estudante também, né, porque sempre temos que aprimorar nossas técnicas.
Fala sério, até a Barbie Profissões ficaria com inveja de tanta carreira numa só. Mas isso é porque ela é uma boneca. Se fosse uma pessoa, ela estaria é clinicamente esgotada.
Objeto x mercadoria
Um outro ponto que me pega nessa conversa é o quanto a gente ainda tem dificuldade em separar o que é produzir um objeto e o que é produzir uma mercadoria.
Quando nos dedicamos à arte, nós criamos algum tipo de produto, seja ele físico ou não. Mas nem todo produto é, em si, uma mercadoria. Porque uma mercadoria, no fundo, tem seu valor medido pelo o que ela oferece pra que o sistema continue girando. Uma mercadoria só tem valor se ela pode gerar mais capital.
E o que é o capitalismo se não a produção para esse propósito, não é mesmo?
Olha a diferença: de um lado, a criação e a comercialização de um produto conforme a necessidade de quem faz e de quem consome. De outro, a criação e comercialização de um produto em nome do lucro, seguindo um modelo de produção que vai levar em conta as necessidades do sistema - e de quem o faz.
Veja, não estou colocando aqui um juízo de valor inerente e apontando que um é “mais puro” ou “mais arte” do que o outro. Uma obra é uma obra, independente se é feita pra saciar o espírito ou pagar as contas.
Mas uma mercadoria tem um ethos diferente. Existe uma lógica de criação, distribuição e consumo que não é baseada apenas em trocas comerciais. É um outro processo, que se baseia no lucro acima de tudo e justifica tanto a exploração predatória de recursos quanto a separação da necessidade humana e do mercado.
E repare que ela não existe pra que nós, consumidores, possamos satisfazer nossas necessidades. Pelo contrário: necessidades são criadas para que a gente consuma essas mercadorias. É toda uma outra lógica que, no fundo, só nos distancia ainda mais do que precisamos como pessoas e nos aproxima dessa categoria desumanizada de consumidores.
Daí vem o grande pulo do gato: a vida atual, que busca cada vez mais pelo lucro desenfreado, não nos dá muita opção de consumo e nem de produção. O mercado dita a tendência e a opção que nos resta é transformar a criação de qualquer coisa em mercadoria. Seja esse produto a nossa arte ou a nossa própria vida.
O que ninguém te conta é que você, trabalhador que não tem poder nesse sistema, não vai conseguir gerar grande valor nas suas mercadorias. Afinal, se o valor dela está no capital envolvido, só quem o detém é capaz de realmente se estabelecer no mercado, como as grandes produtoras culturais.
Por isso, a arte que ganha holofotes e gera grandes salários é aquela que tem muito investimento envolvido. Quanto mais grana é injetada, mais grana é gerada. E é esse tipo de valor típico da lógica mercadológica que nenhum de nós é capaz de criar.
O que nos resta então? Se precisamos produzir mercadorias para sobreviver mas não somos capazes de agregar valor suficiente à elas, o que fazer?
O que tantas outras pessoas tem feito internet afora: tentar viver do que dá. Seja de marketing, infoproduto, vendas, publis, freelas, Tigrinho (socorro) ou o caralho a quatro. O que estiver pagando as contas.
E, infelizmente, arte não tem sido uma das opções mais viáveis.
E se eu não quiser?
Volto a pensar na pessoa que comentou que “os artistas ignoram a parte de vendas” e bom, concordo com ela. Eu realmente não olho pra essa parte, e entendo o quanto isso pode ser prejudicial.
Mas acho que esse é o ponto: não é só que não penso em vendas, é que eu não quero pensar.
Já preciso trabalhar, fazer faculdade, cuidar de casa, fazer comida, ir na caceta da academia e ainda tenho que fazer cursos pra me desenvolver na carreira e, quem sabe, alcançar melhores salários. Já vivo exausta de tanta responsabilidade a cumprir, e arte é o que consigo fazer no meu tempo livre (e olhe lá).
Daí eu, que já não tenho tanta disponibilidade assim, ainda tenho que aprender a vender?
Porra, se tivesse mais tempo livre eu queria é fazer mais arte, isso sim.
Aliás, tudo o que queria era poder fazer arte e só. Sem precisar ser blogueirinha, vendedora, marketeira e toda a lista infinita de profissões que precisamos assumir sem nenhum retorno. Isso sim seria um sonho.
Ainda que eu entenda a necessidade e concorde com a pessoa, só acho que a gente está olhando pra isso de perspectivas diferentes. Porque, por mais que seja real a necessidade de vendermos o nosso peixe, será que a gente não pode pelo menos reconhecer também a carga terrível que isso gera? Será que, ao invés de promover mais culpabilização, não podemos reconhecer que temos limitações?
Ao invés de jogar pros artistas, por que não tentar mudar um pouco a lógica? Por que não criar um cultura de apoio mútuo e de ajuda nesse processo? Por que não incentivar uma economia criativa mais humanizada, que remunera criadores de maneira justa e sem cobrar a alma em troca? E por que não apoiar produções independentes e dar mais espaços para que artistas possam criar sem acumular funções?
Por que não mudar a chavinha, parar de criar apenas soluções individuais e tentar pensar em coletivo?
Eu ainda sonho com a hora em que um artista, ao invés de ter que aprender a se vender, não vão precisar se preocupar com isso. Sonho com um contexto em que criadores serão remunerados por suas produções, e não por publicidade feita em cima delas. E sonho ainda mais com o dia em que todos nós teremos a oportunidade de trabalhar com a criatividade e só, sem mais um monte de funções e demandas embutidas aí no meio.
Enquanto isso não acontece, me vejo obrigada a me adequar ao mercado e aprender a vender o meu peixe. Mas, já que ainda não custa sonhar, mantenho também a esperança de que um dia a gente chega lá e alcance a tal meta de viver de arte - e nada mais.
O meu humilde peixinho
Agora em agosto esse projeto completa seus 3 anos. Quem diria, não?
Por isso, resolvi enfim perder o medo de pensar na minha carreira artística e dar um grande passo pra minha newsletter: a opção de uma assinatura paga!
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Texto ótimo! Sonhar ainda não foi roubado pelo capitalismo, e é isso que define o caminho pra onde a gente vai.
Tão bacana falar sobre esse assunto. senti essa exaustão de ser inúmeras funções quando tudo que eu queria era criar. Tive que dar uns passos atrás quando vi a vontade motora que move tudo em mim quanto o assunto é escrita indo ralo abaixo. Não foi uma decisão fácil (em muitos sentidos, inclusive o financeiro), mas escolhi a arte e acredito genuinamente que ela abre caminhos gigantes, que vão muito além do dinheiro.
Ps: Eu também sonho com um mundo em que artista apoia artista e que a sociedade em geral, valorize o que fazemos e veja que é arte sim, mas também é trabalho.