Bruxas não usam botox
Bruxas não usam botox
Eu só fui me interessar por esses trem de skincare agora, durante a pandemia. Na busca louca por atividades de autocuidado, resolvi dar uma chance pra um creminho ou outro e acabei me apaixonando. Até tentei outros hobbies de quarentena, como yoga ou assar pão, porém só mesmo skincare que perdurou em minha rotina. E posso até tentar um vinyasa de vez em quando, mas aquela hidratada no rosto antes de dormir eu já não abro mão mais.
Mas estaria mentindo ao dizer que é só o autocuidado que motiva esta constância. Por mais que eu ame o resultado de um sérum a base de retinol, confesso que é pela promessa de rejuvenescimento que o uso. Até me sinto fútil por isso, mas prefiro ser sincera. Nem a chance de câncer de pele foi o suficiente pra me fazer usar protetor solar rigorosamente, mas o medo de rugas sim.
Chega a ser irônico: a maturidade me fascina, mas os sinais do envelhecimento ainda são um problema. Me sinto cada dia mais confortável comigo mesma e, ainda assim, temo carregar os sinais desse processo que tanto me faz bem. Por que? Por que tanto medo? Por que sinto essa necessidade sem nem me dar conta? E por que gastar dinheiro para impedir um processo natural a todo ser humano?
Algo que sempre martela em minha cabeça quando me pergunto essas coisas é: se eu fosse homem, será que eu sentiria a mesma necessidade de esconder os sinais da idade? Será que, sendo um homem branco e hétero, bem família tradicional brasileira, eu ligaria tanto pra pés de galinha ou bigode chinês?
Nem se preocupe, essa questão é meramente retórica. É claro que eu sei a resposta.
Outro dia esbarrei com esse tweet sobre como Selena Gomez estaria bem conservada para alguém da sua idade e quase caí pra trás. Aparentemente ela está com o “banho de formol em dia” porque, veja só, ela parece bem mais jovem do que seus 29 anos. E aí meu cérebro bugou, óbvio. Uma pessoa da idade dela deveria aparentar exatamente o quê? O que a sociedade acha que acontece quando uma mulher se aproxima dos 30, ela vira caquética? E na moral, se ela já é considerada velha aos 29, imagina depois dos 40?
Não foi à toa que algumas rugas no tapete vermelho de Cannes viraram até manchete. É tão raro uma mulher ter o direito de envelhecer e se sentir confortável com isso que, quando a atriz Andie Macdowell ostentou seus fios grisalhos no festival, ganhou notícia internacional. Num mundo de preenchimentos e procedimentos cada vez mais precoces, ver Andie tranquila com seus 63 anos é até mesmo inspirador. Afinal, nossa sociedade é tão misógina e etarista que, sinceramente, ser uma mulher velha parece até um crime.
Curioso como homens seguem envelhecendo e apresentando as cabeleiras brancas na mídia sem problemas, mas uma mulher aceitar a naturalidade de seu corpo é um grande choque. Para eles, idade é sinônimo de experiência, já para nós é de vencimento. E enquanto Clooneys e Reeves são feito vinho, melhoram com a idade, atrizes como Charlize Theron são consideradas velhas demais para interpretar super heroínas. A mensagem é clara: mulheres tem um papel específico a desempenhar. E, para isso, envelhecer está fora de cogitação.
Parece até uma obsolescência programada: prazos de validade cada vez menores para o consumo de mercadorias cada vez mais novas. Mulheres são tratadas como objetos não é de hoje, mas o neoliberalismo desenfreado tem nos transformado em produtos ainda mais abusáveis e descartáveis. O valor que temos na sociedade está diretamente ligado ao quanto nossos corpos, trabalhos, histórias e vidas podem ser explorados para o máximo lucro. E não se engane: falar que mulheres jovens estão com o “banho de formol” em dia ou rechaçar as mais velhas que fizeram “procedimentos demais” não é mero acaso. É tudo projeto.
Autora Silvia Federici
Ler o trabalho de Silvia Federici foi um divisor de águas na minha formação acadêmica e política. Os livros Calibã e a Bruxa e Mulheres e Caça às Bruxas não só demonstram porque a autora é uma grande referência na área, mas também me mostraram o embasamento teórico praquilo que, de alguma forma, eu vivo na prática. E, por mais que eu nunca tenha imaginado que skincare e caça às bruxas se ligariam de alguma forma, a obra de Federici me mostra como a misoginia é uma das bases da nossa sociedade capitalista – e se reproduz até mesmo num creminho anti-idade.
Em Mulheres e Caça às Bruxas, a autora esmiúça a relação direta entre a acumulação primitiva de capital, a criação de um novo sistema social e, para isso, a necessidade da divisão sexual do trabalho. Para sustentar este capitalismo em formação, é fundamental a reprodução de mão de obra barata, seja na manutenção da vida doméstica para o controle do corpo empregado ou mesmo no nascimento de novos potenciais trabalhadores. E que melhor forma de impor às mulheres este trabalho através do terror da fogueira? Federici sugere:
“Apontar e perseguir as mulheres como “bruxas” preparou o terreno para o confinamento das europeias no trabalho doméstico não remunerado. Isso legitimou sua subordinação aos homens, dentro e fora da família. Deu ao Estado controle sobre sua capacidade reprodutiva, garantindo a criação de novas gerações de trabalhadores e trabalhadoras. Dessa forma, as caças às bruxas estruturaram uma ordem especificamente capitalista, patriarcal, que continua até hoje, embora tenha se ajustado constantemente em resposta à resistência das mulheres e às necessidades sempre em transformação do mercado de trabalho.” (pág. 98)
A figura aterrorizante da “bruxa”, essa mulher libertina e insubordinada, foi uma potente ferramenta das classes dominantes pra estabelecer a nova ordem social. Afinal, o sexo passa a ser outro mecanismo de controle contra os corpos trabalhadores, como enfatiza a autora:
“No entanto, o que o capitalismo reintegrou na esfera do comportamento social aceitável para as mulheres foi uma forma de sexualidade dócil, domesticada, instrumental para a reprodução da força de trabalho e a pacificação da mão de obra. No capitalismo, o sexo só pode existir como força produtiva a serviço da procriação e da regeneração do trabalhador assalariado/masculino e como meio de pacificação e compensação social pela miséria da existência cotidiana” (pag. 77)
Reparou como corpo e reprodução são peças-chave aqui? Ditar a procriação como função social da mulher não só foi fundamental para a ascensão do capitalismo, mas até hoje ainda é presente na nossa realidade. Aí que a gente para e pensa: se o valor de uma pessoa está diretamente ligado ao que ela produz para o sistema, então qual o papel de uma mulher idosa pro capital? E esse é o problema: se ela não consegue mais parir ou manter a vida doméstica como alguém mais jovem, ela já não tem mais lugar na nossa sociedade. Simples assim.
Além disso, como bem descreve a autora, a mulher idosa também representa uma grande ameaça à classe dominante. Ela é quem guarda as vivências, os conhecimentos, os segredos e os laços comunais. Ela simboliza a coletividade e a experiência. E por isso que, para a nova ordem social, seu poder perante a comunidade é tão perigoso.
“As mulheres foram aterrorizadas por acusações fantásticas, torturas terríveis e execuções públicas porque seu poder social – um poder que, aos olhos de seus perseguidores, era obviamente significativo, mesmo no caso das mulheres mais velhas – precisava ser destruído. Na verdade, as idosas podiam atrair as mais jovens para seus hábitos perversos e tendiam a transmitir conhecimentos proibidos, como aqueles referentes às plantas indutoras de aborto, e levar adiante a memória coletiva de sua comunidade” (pág. 79)
Por isso que essa figura da “bruxa”, tão ameaçadora, costuma ser uma mulher idosa, rebelde e solteira. Ela foi criada justamente pra espalhar terror entre as mulheres, estabelecer esta ordem moral casta e, através de práticas genocidas, minar o mínimo de poder social que ainda tinham. E apesar da distância histórica deste período, até hoje o mito da bruxa cumpre o seu papel pedagógico.
Velhice e produção desenfreada do capital realmente não combinam muito, e é por isso que os valores dominantes nos empurram tanto a ideia de sermos eternamente jovens. Na tentativa de nos manter o tempo todo como mão de obra explorável, a ideologia burguesa nos coage a continuarmos produtivos a qualquer custo – e, pra ela, juventude é sinônimo de produção.
Vamos combinar que, numa sociedade que cobra o que pessoa alguma pode oferecer, envelhecer não é fácil pra ninguém. Mas, como a história nos mostra, o trem fica ainda pior se você é mulher. Com exigências cada vez mais desumanas e inalcançáveis, somos empurradas a cumprir padrões sociais que não nos respeitam e muito menos nos fazem bem. Maternidade compulsória, trabalho doméstico obrigatório e não remunerado, coerção aos procedimentos estéticos, lucro desenfreado sobre nossas ansiedades (geradas pelo próprio sistema), necessidade de esconder o que é natural, isolamento social para comportamentos desviantes: são todos mecanismos de controle muito bem planejados. E ai da gente se ainda reclamar.
Diversas mulheres já se pronunciaram sobre o que é envelhecer sob os holofotes, e não me espanta o tanto de ódio que elas recebem. Susan Yara, referência na área da beleza e dona da sua própria linha de skincare, relata neste vídeo como as pessoas fazem questão de humilhá-la por ser uma mulher na casa dos 40. Os comentários sempre tentam diminuir sua aparência e sua pessoa também, tomando ares de perseguição que deixariam qualquer inquisidor da Idade Média orgulhoso. E isso é só a ponta do iceberg.
Madonna também é uma figura emblemática na indústria e não teve papas na língua ao ganhar o prêmio de Mulher do Ano da Billboard. Em seu discurso, a cantora foi incisiva: “Se você é uma garota, você tem que jogar o jogo. Você tem permissão para ser bonita, fofa e sexy. Mas não pareça muito esperta. Não aja como você tivesse uma opinião que vá contra o status quo. Você pode ser objetificada pelos homens e pode se vestir como uma prostituta, mas não assuma e se orgulhe da vadia em você. (...) E por fim, não envelheça. Porque envelhecer é um pecado. Você vai ser criticada e humilhada e definitivamente não tocará nas rádios.”
Isso me faz pensar que, se fosse alguns poucos anos atrás, talvez os cabelos naturais de Macdowell fossem mais do que manchete nas revistas. Céus, a sociedade precisa tanto nos “colocar na linha” que já imagino ela sendo feita de exemplo do padrão que não devemos seguir. Sendo a “bruxa” aterrorizante que todo programa de TV faria questão de rechaçar, até ninguém mais se interessar por seu trabalho. Parece besteira, mas eu realmente não duvido que uma atriz como ela poderia até mesmo perder a carreira só por ousar ficar confortável na própria pele envelhecida. Dá pra conceber todo o trabalho de uma vida sendo descartado só por que você não teve saco pra pintar o cabelo?
Ainda bem que, de alguma forma, os tempos parecem mudar. O pequeno gesto de conforto e orgulho de Macdowell no tapete vermelho fomentou diversas discussões sobre o assunto, inspirou outras mulheres e, por fim, creio que teve um saldo muito positivo. Provavelmente ainda teve gente babaca pra diminui-la, mas o importante é que, diferente do que se espera, muitas outras pessoas não aceitaram essa baboseira de que ela não pode fazer o que quiser só por ser mulher. E o grande plot twist dessa história é justamente ver a figura da bruxa tomando outro contexto, de uma mulher velha e poderosa, que já não mete mais o mesmo medo. Pelo contrário, ela passa a ser uma ótima inspiração. E eu estou amando essa movimentação.
Sinceramente, não vejo problema algum se uma pessoa quer manter a pele rejuvenescida e gosta dessa parte de procedimentos estéticos. A grande questão é que, no fundo, somos coagidas a essa necessidade da eterna juventude pra manter nosso direito de ocupar a sociedade. Somos levadas a acreditar que, se não tivermos um rosto belo e jovem feito a Cher, não teremos qualquer valor enquanto seres humanos. E vamos combinar, só a Cher consegue ser como a Cher. Não tem como ganhar nessa.
Mas quando penso em uma bruxa, não vejo alguém muito interessada em aplicações de botox ou preenchimentos faciais. Tem mais cara de ser aquela mulher que se preocupa em manter as leituras em dia, que alimenta todos os gatos das redondezas, que planta os próprios temperos, corta a própria lenha com uma machadinha e as vezes bota medo na criançada da rua, só por diversão. Na minha cabeça, essa bruxa enfrenta tudo de cabeça erguida e bota homem chato no chinelo. Talvez ela seja adepta da proteção solar, afinal, câncer de pele nunca é legal. Mas ter vergonha das próprias rugas? Ah, isso eu não consigo imaginar.
Acho que é por isso que, apesar de não me ligar com nada místico ou espiritual, eu gosto da ideia de ser bruxona. Essa figura insubmissa, selvagem, que exala conhecimento e bota qualquer machinho frágil pra correr é, sem dúvida, minha meta de vida. E é aí que eu preciso por na balança: será que eu preciso tanto assim de um rosto jovial pra ser a mulher brilhante e experiente que pretendo ser? Será que eu faço tanta questão assim de um ocupar espaço numa sociedade que me odeia?
O tempo é curto demais pra não ser livre. Então prefiro deixar as aplicações de botox de lado, ir atrás de calibrar minha vassoura e botar logo meu caldeirão pra ferver.
Curiosidade bateu?
Eu já fiz um texto relacionando Madonna, siririca e caça às bruxas que, particularmente, eu adoro. Se quiser dar uma olhada, chega aqui
E se quiser ler algum dos livros da Federici (o que super recomendo), pode conferir Mulheres e Caça às Bruxas ou Calibã e a Bruxa
Opa, o texto da Madonna ainda existe? Porque o link não