A pessoa que não gosta de pessoas
O adesivo no chão diz “aguarde ser chamado”, então obedeço. Uma mulher impaciente espera logo a minha frente enquanto, no balcão, um casal tira suas dúvidas sobre uma das atividades do mês. Ouço uma voz às costas me pedindo licença e, quando dou espaço para passagem, uma senhora da hidroginástica passa direto por nós e segue para sua aula. “Por que eu também não posso passar?”, pergunta com grosseria a mulher da frente e, com cautela, o atendente da vez verifica seu agendamento para liberar a entrada. E eu, que estava naquele posto de trabalho até alguns dias atrás, sinto uma ansiedade familiar me tomar.
Já até me cansei de responder esta mesma pergunta e explicar que, já que alguns frequentadores estão na unidade todos os dias, sabemos quem são e que estão com todas as exigências em dia. Cansei também desse ar de superioridade de pessoas como ela, talvez tão acostumadas com o mundo aos seus pés, que não aguentam esperar alguns míseros segundos em uma fila. Cansei inclusive de ser a trouxa que abre um sorriso (por baixo da máscara) pra esse povo e ainda é obrigada a ser simpática com quem só quer descontar as frustrações pessoais pra cima de você. E, principalmente, me cansei dessa sensação horrível de que posso ser feita de gato-sapato só por usar o uniforme.
Mas aí é que está: eu não uso mais o uniforme. Eu não sou mais funcionária deste espaço, mas sim uma simples frequentadora. Já não sou mais a atendente do balcão e não preciso mais me preocupar com os ossos do ofício. Enfim estou livre dessa loucura que é a função de atendimento ao público, como tanto sonhei ao longo dos últimos anos.
Então por que diabos esse maldito sentimento permanece?
Socialização sempre foi, para mim, um negócio meio complicado. Seguir a cartilha social de como se relacionar com alguém já me causa uma ansiedade desgraçada e, só pra piorar, sinto que sou péssima nessa história de me conectar com a outra pessoa. Conversa fiada então? Vish, é um martírio. Os anos de prática até me ajudaram a cumprir com o esperado nesses casos, mas, na real, ainda me sinto um tanto alienígena quando interajo com alguém. É terrível.
Minhas esquisitices e inseguranças em relações individuais atrapalham um pouco, mas até que consigo me virar. O problema é quando tem mais gente envolvida, que aí sim o trem aperta e eu começo a ficar meio em pânico. Qualquer coisa que tem muitas pessoas e muito contato já me deixa em danger, e não é à toa que festas e baladas estão longe de ser minha praia.
Quando se faz necessário e me vejo em ambientes lotados, tento me distrair do tanto de estímulos ao redor e faço o possível para segurar a barra – e às vezes até dá certo. Mas, apesar de conseguir transitar por esses espaços, não tem como negar: multidões não me deixam nem um pouco confortável.
E sabe o que me deixa tão fora de lugar assim? Talvez seja apenas viagem minha, mas tenho essa sensação de que, no fundo, uma interação com outro ser humano nunca é apenas isso. Me parece que sempre tem algo nas entrelinhas, algo que faz com que minha cabeça fique a milhão e eu não consiga relaxar próximo de outras pessoas. É como se as histórias, as expectativas, as frustrações e os traumas alheios também estivessem ali na roda e, por isso, sinto que preciso medir cada palavra e gesto que utilizo. Acaba que qualquer papinho bobo tem todo um script elaborado por trás e, sinceramente, isso me parece coisa demais para lidar.
Uma simples conversa às vezes já me deixa cansada. Uma ligação besta para pedir pizza me intimida e, em dias difíceis, até me faz desistir do pedido. Tudo que envolve contato social começa a me deixar exausta. E, só pra piorar, atendimento ao público foi o que botou comida na minha mesa por mais tempo do que gostaria.
As coisas ficam um pouco mais afloradas quando sua função envolve contato direto com pessoas. E, por conta das relações sociais bem problemáticas, ser atendente de qualquer lugar te faz lidar com partes bem terríveis do ser humano. Até perdi as contas de quantas vezes fui diminuída e humilhada ao longo desses anos de trabalho e, infelizmente, isso não é algo fácil de se esquecer. Mexeu tanto comigo que, querendo ou não, passei a encarar qualquer interação já com aquele frio na barriga de que alguma merda estava prestes a acontecer – mesmo quando tudo ia bem. E vamos combinar que, se uma simples conversa parece o desarme de uma bomba-relógio, realmente não tem corpo que aguenta, né.
Quando lidar com pessoas se tornou meu trabalho, me vi sem energia alguma pra fazer isso fora do expediente. Acabei não apenas com dificuldades em me relacionar com gente, mas também sem qualquer vontade pra isso. Humanos se tornaram sinônimo de problema para mim e, com todo o caos de tempos fascistas e pandêmicos, essa sensação só ficou ainda mais grave. Meus sonhos passaram a ter cada vez mais casas no meio do mato e cada vez menos vizinhos ao redor. E o isolamento, que pode ser tão intimidador, me pareceu cada vez mais tentador.
Mas sabe qual a parte mais louca dessa história? É que, apesar de todo esse mal estar, ainda tem uma voz dentro de mim que clama por aproximação e contato humano. Mesmo quando me sinto totalmente fora de lugar e nem um pouco afim de interação, essa maldita voz continua ecoando e me pedindo para tentar mais uma vez. E o que mais me irrita nisso tudo? É que eu sou trouxa o suficiente pra ouvi-la.
Só tive real noção dessa necessidade quando, em uma sessão de tattoo, sentir o calor da pele da tatuadora me deixou emocionada. Tomada pelo pavor da pandemia e pela total exaustão de socialização, confesso que eu estava muito confortável com esse negócio de isolamento e distanciamento social. Mas, quando senti aquele toque suave em meio à dor da agulha, não deu mais pra negar o quanto aquilo me fez falta. E eu, que já não aguentava mais lidar com pessoas, de repente me vi sedenta por um pouco mais de calor humano.
Percebo que, lá no fundo, eu quero sim criar laços e melhorar minhas habilidades sociais. Quero mesmo ser uma pessoa mais aberta e lidar melhor com os convívios do dia a dia. Talvez até deixar de ser tão alienígena, pelo menos de vez em quando, e enfim aprender a me relacionar com outras pessoas. Sair do piloto automático, deixar de lado os mecanismos de defesa que construí ao longo dos anos e, de fato, ser verdadeira em minhas interações. Virar gente, sabe?
Só que, ao mesmo tempo, também percebo que as coisas não são tão simples assim. E a vida, cretina como ela é, logo chega na voadora e me faz questionar: será que vale mesmo a pena todo esse esforço?
Pode ser por conta de um cliente grosseiro que joga suas frustrações pra cima de mim, como seu eu tivesse que resolvê-las, e me deixa aquele gosto amargo na boca de que a culpa ainda é minha. Pode ser pelas relações delicadas de trabalho onde, além de ter que dar um duro danado pra manter meu emprego, preciso ter cuidado com colegas que estão dispostos a tudo para crescer dentro da firma. Ou talvez seja uma notícia ou um causo cotidiano que me deixa de cabelo em pé e me faz pensar que, no fundo, ninguém está seguro nessa vida mesmo. Independente do gatilho, não demoro muito para largar mão dessa ideia, ficar mais uma vez apavorada com as dinâmicas sociais e voltar para as minhas pesquisas sobre casas isoladas no meio do mato.
Feito uma garotinha assustada, eu recuo nessa história de ser sociável e me vejo, mais uma vez, exausta de estar em contato com gente. Às vezes até me parece um pouco mais fácil e eu me atrevo a começar uma interação ou outra, mas logo me bate aquela sensação bizarra de que estou fazendo tudo errado. Às vezes as coisas até que fluem bem e eu estabeleço um laço verdadeiro, mas até nisso eu me sinto cansada. E às vezes só me resta mesmo voltar pra minha bolha e matar a vontade de calor humano com meu círculo social que, ainda que reduzido, é bastante querido.
O duro é que, nos dias mais difíceis, nem a familiaridade é o suficiente pra me deixar confortável. O que fazer então quando me sinto alienígena até dentro da minha própria bolha? Pra onde correr quando parece que lugar nenhum me cabe?
Acho que é esse sentimento que me toma enquanto espero minha vez na fila da entrada. A fala da mulher da frente, de uma agressividade simbólica e bem disfarçada, desperta em minha toda essa inadequação social – que só se agravou com os anos de trabalho. Escondo uma careta por baixo da máscara e, com a pouca energia que me resta, me esforço pra ignorar os estímulos ao redor, para esquecer essa chata de galocha e só me concentrar no ex-colega que me chama ao balcão. Até penso em aproveitar o espaço pra bater um papo e perguntar como as coisas andam por ali, mas prefiro evitar. Já estou desconfortável o suficiente, então melhor deixar pra lá.
Aviso que tenho um horário agendado e me sento no banco de madeira, dando uma trégua pras pernas cansadas. E, enquanto isso, observo o tanto de gente que transita pelo espaço e me pergunto como é que eles conseguem. Será possível que todos se sentem tranquilos com socialização e só eu tenho essa ansiedade besta por dentro? Será que sou mesmo a única que se sente tão fora de lugar? Será então que eu sou o problema e, no fundo, lidar com pessoas é muito mais fácil do que parece? Ou será que eles só aprenderam a disfarçar melhor suas próprias inadequações?
Sei que dificilmente terei alguma dessas respostas, então melhor espairecer um pouco antes do meu atendimento. Até considero que sim, talvez eu seja mesmo o problema em toda essa história, mas tento não deixar isso me consumir. Antes que chegue minha vez, dou uma sossegada no coração e penso que, apesar dos pesares, está tudo bem. Afinal, posso até não ter nenhuma resposta, mas ao menos arrumei um bom tópico de discussão pra minha próxima sessão de terapia. E lá, meus queridos, lá eu sou o mais alienígena possível. Sem qualquer problema com isso.