De que adianta?
De que adianta?
Janeiro foi, para mim, um mês infinito. Os dias se passavam, as coisas eram feitas, eu já estava exausta de tanto trabalho e, em contrapartida, o calendário nem andava. Acho que foi tudo tão igual ao longo das minhas semanas que, no fundo, senti que estava presa no espaço-tempo sem qualquer chance de escapar da mesmice e do marasmo. E olha que, ao contrário do que foi o resto dele, meu mês começou bem diferente de tudo isso.
No primeiro dia de 2022, eu comecei me alongando e comendo super bem – já dando o tom do que gostaria que fosse o ano à minha frente. Logo veio mais: meu primeiro passeio de bike, minha dose de reforço contra a covid, uma viagem super chuchu pra um chalé mais isolado, reencontro (cuidadoso) com amigos muito queridos e até edição nova da newsletter, depois de uns 3 meses sumida. Eu não estava lá super empolgada com o trabalho, mas sabe que até isso deu pra contornar? O trem estava realmente indo de vento em popa, e eu mal conseguia acreditar.
Mas claro que, junto com meu começo de ano super empolgante, também veio a grande merda das merdas. Omicrôn atacou com tudo e, na minha cidade, assim como no resto do mundo, os casos voltaram a subir assustadoramente. O trem foi ficando feio de novo. E, apesar da minha vontade de manter esse pique todo, me vi mais uma vez com medo de sair de casa e me isolando quando possível. Só que, no novo normal, me isolar significa trabalhar presencialmente com atendimento ao público, mas não sair de casa pra mais nada – nem mesmo pro que me ajudaria a fazer do trabalho algo mais leve. É uma bosta, viu.
As semanas se passaram em câmera lenta. Cada dia mais parecido com o anterior, cada vez mais medo da covid e, na mesma medida, cada vez menos empolgação e motivação. Todo aquele fogo que senti no começo do mês foi se apagando e, novamente, me vi nessa lógica maldita de não fazer nada de minha vida a não ser trabalhar e me preparar para o expediente seguinte.
A escapada para o chalé chuchuzinho já me parece coisa de uma vida passada. A vontade dos passeios de bike está em stand by por prevenção, mas, com isso, acho que minha empolgação com todo o resto também ficou assim. A lista de leituras até cresceu, justamente porque eu precisava muito dessa válvula de escape. E mesmo a maratona de Rupaul’s Drag Race não foi o suficiente pra dissipar essa maldita sensação: a vida está passando, o tempo está correndo e eu, em contrapartida, não estou fazendo nada a respeito.
Com isso, a meta de ir morar na praia se torna uma urgência. O sonho de escrever um livro algum dia passa a ser uma necessidade pra agora. A tal cauda de sereia que namoro faz uns anos vira quase uma obsessão. E o e-mail que tanto aguardo, com uma nova promessa profissional, faz com que cada dia sem resposta seja um martírio. A ansiedade toma conta e me cobra o tempo inteiro que eu preciso fazer algo, e precisa ser pra já. Mas, pro meu grande azar, quanto mais eu sinto essa afobação sobre realizações, mais distante delas eu fico. Parece que não dá pra ganhar, sabe?
Não tem vivacidade que se sustente quando a energia e a disposição já foram embora. Não tem motivação que aguente uma enxurrada de estímulos pelas redes sociais que contrastam e diminuem a sua vida pacata e sem graça. E não tem como evitar a pergunta fundamental ao se deparar com todas essas questões: afinal, o que faço nesse mundo? Qual o sentido da vida? E de que adianta estar aqui?
Minha leitura em pleno estúdio de tatuagem
Dezembro passado foi quando fiz minha primeira viagem desde que começou toda essa pandemia. Saí daqui no comecinho do dia, fui até a capital para enfim tatuar meu cachorro no antebraço e só voltei na madrugada, já aflita por minha cama. Essa aventura envolveu algumas coisas malucas, umas histórias pra contar e boas reflexões, como descrevi aqui. Mas, pra além do trabalho incrível que agora carrego no braço, algo que também me surpreendeu (e eu nem imaginava quanto) foi o livro que levei em minha bolsa.
Comecei a obra Antropoceno: notas sobre a vida na Terra, de John Green, sem muita pretensão. Eu precisava me distrair durante essa viagem e um livro era a melhor pedida, nada mais que isso. Me diverti entre diversos capítulos e me maravilhei com a maneira com que o autor escreve, mas, confesso, estava enrolando um pouco com essa leitura. Voltei do meu bate e volta e deixei esse livro um pouco de lado, demorando em torno de umas duas semanas pra concluí-lo.
E quer saber? Ainda bem que isso aconteceu. Pois a crônica “sicômoro”, minha favorita, veio justamente quando mais precisava.
John começa esse texto nos contando sobre seus filhos e o tal jogo do Por Quê?, que já conhecemos bem. “Por que preciso terminar o café da manhã?”, a criança pergunta, e o pai lhe diz que é importante manter uma nutrição adequada. “E por que preciso de nutrição adequada?” é a próxima bomba, que o autor nos conta também como consegue remediar. Mas é claro que, apesar de uma boa resposta, logo vem mais um “por quê?” que o deixa maluco, assim como qualquer um que tem contato com crianças bem sabe. Mas, pra além deste jogo tão famoso, ele também nos conta sobre a sua versão adulta: De Que Adianta? Nas próprias palavras de Green,
“Quando minha mente começa a jogar De Que Adianta? não consigo encontrar motivo para fazer arte, que é apenas usar os recursos finitos de nosso planeta para fins decorativos. Não consigo encontrar motivo para cultivar hortas, que são apenas uma maneira de produzir alimentos de forma ineficiente para sustentar as nossas carcaças inúteis por mais algum tempo. Não consigo encontrar motivo para me apaixonar, pois seria apenas uma tentativa desesperada de afastar a solidão da qual jamais poderei me livrar de verdade, porque estarei sempre sozinho, ‘imerso profundamente no escuro que é você’, como disse Robert Penn Warren”
Essas palavras me são estranhamente familiares. Confesso que fui atingida em cheio enquanto lia essa parte, pois, no fundo, foi impossível não me ver ali.
Green continua e diz:
“(...)Todas essas dores e provações por algo que se tornará nada, e em breve. Sentado no aeroporto, estou enojado de meus excessos, minhas falhas, minhas tentativas patéticas de criar algum significado ou esperança com os materiais deste mundo sem sentido. Eu estive me enganando, pensando que havia alguma razão para tudo isso, pensando que a consciência era um milagre quando na verdade é um fardo, pensando que estar vivo é maravilhoso quando na verdade é aterrorizante. O fato é que, informa o meu cérebro quando se dedica a esse jogo, o universo não se importa com a minha presença nele.”
Sinto um aperto no peito e uma terrível identificação com esse trecho. Tudo me parece mesmo pesado demais e, em contrapartida, não sei se vale tanto a pena assim. É bom saber que mais alguém também se questiona de que merda adianta no final, mas, sinceramente, não sei dizer se isso me conforta.
É quando chego ao final do texto que a coisa se inverte e sou tomada por uma emoção que me enche os olhos d’água. De repente, tudo parece mais leve e até mesmo mais belo. John nos presenteia com o seguinte trecho:
“Certo dia, o ar está um pouco mais quente e o céu não está de uma claridade ofuscante. Eu e meus filhos estamos caminhando por um parque florestal. Meu filho aponta para dois esquilos correndo ao longo do tronco de um imenso sicômoro americano, sua casca branca soltando pedaços, suas folhas maiores do que pratos de jantar. Penso: Meu Deus, que árvore linda. Deve ter cem anos, talvez mais. Mais tarde, volto para casa e leio sobre sicômoros e descubro que há sicômoros vivos com mais de trezentos anos, árvores que são mais velhas do que a nação que as reivindica. Descubro que, certa vez, George Washington mediu um sicômoro com quase doze metros de circunferência e que, após desertarem do Exército britânico no século XVIII, os irmãos John e Samuel Pringle moraram mais de dois anos no tronco oco de um sicômoro no que hoje é a Virgínia Ocidental. Fico sabendo que há 2.400 anos, Heródoto escreveu que o rei persa Xerxes marchava com o seu exército por um bosque de sicômoros quando se deparou com um de “tal beleza que se sentiu movido a decorá-lo com ornamentos de ouro e deixar um de seus soldados para trás para guardá-lo”. Mas, por enquanto, estou apenas olhando para a árvore, pensando em como ela transformou o ar, a água e a luz do sol em madeira, casca e folhas, e percebo que estou na sombra vasta e escura desta imensa árvore. Sinto o consolo dessa sombra, o alívio que ela proporciona. E compreendo de que adianta. Meu filho agarra o meu punho, afastando o meu olhar da árvore colossal para a sua mão de dedos finos. ‘Te amo’, digo para ele. Mal consigo pronunciar as palavras.”
Respiro fundo, disfarço os olhos marejados e deixo um calor indescritível tomar meu coração. Suas palavras me abraçam e, sem que eu perceba, eu também sou tomada por essa compreensão: é, eu acho que adianta mesmo.
Apesar dos pesares, paro pra pensar em meus dias e nos pequenos detalhes que me cativam. Seja ao avistar um carcará quando saio para passear com meu cachorro ou ao aproveitar o tempo livre pra improvisar um cineminha caseiro, com o balde de pipoca no colo e o mozão ao lado. Seja ao reencontrar minha família pras festividades, depois de anos sem nos vermos ao vivo, e poder enfim matar essa saudade. Ou mesmo quando volto destruída do trabalho, sem querer saber de nada e, para me animar, meu companheiro lança uma série de piadas bestas só para me fazer rir. E percebo, por fim, que estou com Green nessa. Realmente, adianta.
A vida continua passando, o tempo continua correndo e eu continuo na afobação de ter que fazer algo a respeito. As dúvidas continuam latentes, as respostas continuam escassas e, no fim do dia, a motivação também anda bem pra baixo. Mas, diferente de antes, eu sigo com uma nova certeza: vale sim a pena. E, por enquanto, isso é tudo que preciso pra continuar minha caminhada.
Bateu a ansiedade?
Falando sobre essa coisa meio afobada ou perdida sobre a vida, tenho dois textos que tratam disso lá no blog.
Afobação é uma brisa que tive em um dia de trabalho e uma necessidade horrorosa de juntar minhas trouxas e me mudar pro litoral.
E A (in)utilidade da vida é uma reflexão a partir da minha leitura de A Vida não é Útil, de Ailton Krenak.
Gostou do que leu?
Obrigada por me acompanhar até o final!
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