A pessoa nem me dá a opção de negar. Ela exige o meu CPF para verificar meu cadastro, e tudo se justifica com um desconto que, vamos combinar, todos sabem que não é real.
Cheguei a me assustar quando começaram a fazer isso nas farmácias. Cheguei a temer ficar oferecendo o meu CPF desse jeito porque né, se souberem também meu RG e endereço, já dá pra me inscrever num partido ou tirar um HB20 no meu nome.
Só que, com o passar dos anos, isso deixou de ser um problema e passou a ser natural. Mesmo incomodada, vou até a farmácia já sabendo que eles vão sugar meus dados e, provavelmente, vendê-los para quem vai me socar propaganda até não querer mais. Mas hey, olha esse desconto, não é mesmo?
Lembrei disso outro dia, enquanto conversava com minhas colegas sobre os cartões digitais e a não impressão dos físicos. Um ponto bacana para o meio ambiente, de fato, mas cheguei a comentar como me incomoda que toda a nossa vida se concentre na merda de um celular - um objeto que pode quebrar ou ser roubado a qualquer momento.
“Ah, mas assim é muito mais prático, né?”, nós concluímos.
E então me peguei pensando: será que é mesmo? Será que isso é facilidade de fato? Ou é só mais um pouco do puro suco de ideologia?
Vai um anúncio aí?
Vou ao YouTube descobrir uma receita nova e plau, propaganda de colchão. Daí resolvo ficar de bobeira no instagram, só pra espiar um pouco do que meus amigos estão fazendo, e sou bombardeada por anúncios de protetor solar. Quando o trem tá feio e resolvo sair para caminhar e espairecer, na esperança de que ali não serei incomodada, é outdoor de condomínio e gente com blusa da Nike até falar que chega.
Pra onde eu olho, tem uma propaganda. Não importa o que eu faça e nem o quanto eu tente escapar, sempre tem uma maldita publicidade à espreita.
E nas redes sociais eu até entendo. Já que as plataformas não me cobram para usá-las, eu pago com minha atenção e dados - mesmo não gostando da ideia. Mas, porra, até na rua? Até para ficar parada no trânsito eu sou invadida pelas luzes cegantes de um telão construído estrategicamente ao lado do semáforo, que só passa anúncio de mais e mais condomínios?
Até o que já é desagradável tem que ficar ainda pior?
Muito se fala sobre novas formas de coletar dados e gerar propagandas mais personalizadas. Muito se diz sobre como melhorar a experiência do usuário para que os anúncios sejam cada vez mais assertivos. Mas, apesar de tantos estudos que abordam o assunto, ainda não falamos o suficiente sobre o quanto o nosso cérebro não comporta tanta publicidade desde o berço e o quanto estamos doentes por conta disso.
E a perspectiva é de que fique cada vez pior.
Porque, com cada vez mais informações sobre a psique humana, as marcas criam estratégias ainda mais inteligentes para nos conquistar. Mais do que um produto, elas vendem um lifestyle que, claro, mexe com nossas estruturas e pega justamente na necessidade instintiva que temos de sociabilidade. Estamos sendo convencidos desde o primeiro dia de vida que a única forma de satisfazer essa ânsia humana por pertencimento é consumindo.
E isso vale até para o que a gente nem imagina que é um produto.
Nossos posicionamentos. Nossa forma de enxergar o mundo. Nossos sonhos, metas, vontades e desejos. Nosso lazer e nossa diversão. Até nosso tédio. Tudo, absolutamente tudo se torna uma mercadoria. E, domesticados para isso desde sempre, não conseguimos pensar em outra forma de nos relacionarmos com o externo a não ser assim: comprando. Consumindo. Lucrando.
O planeta está literalmente em ebulição. Nosso sistema conseguiu, em algumas centenas de anos, destruir a Terra ao ponto de não retorno e fez da nossa sobrevivência enquanto espécie algo praticamente impossível.
E a propaganda é tão eficiente que a gente consegue imaginar o fim do mundo, mas não do capitalismo. Do jeito que as coisas andam, não acho que temos muito tempo para reverter o cenário e conseguirmos um novo sistema. Talvez a gente pegue fogo antes mesmo de termos a chance de tentar algo melhor.
Mas hey, olha esse desconto!
E que tal uma ideologia no capricho?
Outro dia vi um descritivo de um serviço de inteligência artificial para empresas que garantia um benefício imperdível: seus dados não serão usados para treinar os modelos de IA e nem estarão expostos.
Daí eu fique “Uai? Mas isso não é pra ser obrigação?”
E não, não é. Típico desse momento de capitalismo tardio, questões como privacidade e ética se tornam uma mercadoria valiosa quando, na verdade, deveriam ser o mínimo oferecido. Eles fazem com que tudo seja exposto para depois te venderem soluções de proteção. É o famoso inventar doença para vender remédio.
E ainda têm a pachorra de dizer que é praticidade.
Isso que mais tenho notado nesses últimos tempos. Cada vez mais se criam gadgets que vão te trazer maior conforto e praticidade para um incômodo que, na real, nem deveria existir (oi, YouTube Premium). E, mesmo sabendo que é sacanagem, estamos tão saturados e sobrecarregados da vida que não dá tempo nem de questionar essas coisas. Só aceitamos e compramos.
Afinal, só a gente sabe o quanto precisa de um pouco de conforto nesse mundo de merda, né?
Mas acaba que é justamente sobre isso. As empresas destroem o planeta e nossa vida em comunidade e, ao invés de perceberem a merda que fizeram, ainda olham para isso como um nicho de mercado para vender e estragar tudo ainda mais.
É um dos maiores problemas que eu tenho com Alexas e afins. Ela está lá, pegando tudo quanto é dado seu e fazendo com que o homem do foguete tenha ainda mais poder sobre a gente. Mas, depois de um dia foda de trabalho, você pode pedir pra que ela apague a luz sem ter que se levantar do sofá. Não é demais?
Cheguei a comentar com um amigo meu o quanto isso, pra além de toda a problemática, ainda está nos adoecendo pesado. Afinal, se o seu cérebro primitivo e movido à estímulos entende que um apagar de luz é uma tarefa difícil o suficiente para precisar de uma ferramenta externa, imagina o que vai ser escrever um TCC? Realizar um projeto mais complexo? O próprio trabalhar?
Não me leve à mal, eu sou a favor do avanço tecnológico em prol da humanidade e inclusive defendo o quando ele é fundamental para questões de acessibilidade. Eu quero mesmo que esses novos gadgets nos ajudem a ter mais tempo para as atividades humanas, e que o futuro tenha mais máquinas realizando trabalhos operacionais enquanto nós aproveitamos um dia gostoso no parque e nos dedicamos mais às artes e afins (alô, renda básica universal).
Mas esse é o problema: parece que as coisas estão ao contrário. Nós temos cada vez menos tempo para sermos humanos e somos cada vez mais consumidos pela tecnologia em nosso tempo livre. E, para coroar, isso ainda derrete o nosso cérebro e dificulta a nossa capacidade de realizar as tarefas mais básicas do dia a dia.
E elas sabem disso. Essas empresas sabem que estão criando obstáculos para uma vida plenamente autônoma e, na real, nos deixando cada vez mais dependentes de seus produtos. E é assim mesmo que eles querem que seja.
Mas putz, olha que desconto! E que praticidade!
Sinceramente, não vejo muita escapatória. Seremos cada vez mais induzidos ao consumo desenfreado, à noções de conforto e praticidade que não nos contemplam de verdade e à sentimentos de inadequação e angústias ainda maiores. Estaremos cada vez mais docilizados e adaptados à disciplina do trabalho, que é incompatível com a vivência humana plena. E seremos cada vez mais convencidos de que essa é a única saída.
Tem dias em que me tranquilizo e penso em diferentes possibilidades de um novo mundo. Tem dias em que eu realmente consigo olhar para esse panorama e dizer “not today, satan”.
Mas hoje não é um desses dias.
Hoje eu apenas estou saturada de tanta propaganda e ideologia. Hoje eu já não aguento mais como as coisas funcionam, mas também não vejo qualquer perspectiva de melhora. Hoje, mais do que qualquer outro dia, eu estou afogada em angústia por não poder ser mais do que uma merda de uma consumidora.
Eu só queria ser humana. E só queria que isso fosse o suficiente.
Pena que humanidade e espontaneidade não geram lucro, né?
Continuo sendo bombardeada por produtos e cursos e estilos e influencers e o caralho a quatro que nem me interessam. Continuo sendo impactada por publicidade e sentindo meu cérebro fritar em ansiedade por tudo isso. E, mesmo tentando fazer o contrário, continuo assistindo ao fim do mundo sem ter muito o que fazer à respeito.
Mas olha só, mais um desconto. Mais um maldito desconto.
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Lembrando que eu continuo falando umas bobagens lá no instagram, caso queira me acompanhar. Pode chegar que eu vou adorar te receber!
nossa, isso me incomoda demais demais. Não tem uma conversa que eu tenha com a minha companheira que não vire publicidade pra mim nos dias seguintes. E parece que isso só piora. Uma busca desenfreada por socar mais e mais publicidade na nossa goela. O que deveria nos ajudar só deixa a gente mais doente e cansado. Não tem muito um caminho sobre o que fazer além de tentar implantar o sentimento de revolta dentro desse sistema pra ele ruir
"Muito se diz sobre como melhorar a experiência do usuário para que os anúncios sejam cada vez mais assertivos" - a rigor, isso só traria para nós uma educação para o consumo, com produtos mais bem direcionados e a despertarem nosso sentimento de falta com precisão angustiante. É aquela coisa, a métrica não é felicidade geral ou felicidade do sujeito, é rodar o estoque ou fazer um mesmo produto digital chegar ao máximo de pessoas.
Sobre fim do mundo, acho difícil frear o colapso do clima levando-se em conta a oposição de que, para isso, é necessário uma série de medidas coletivamente pactuadas versus uma sociedade radicalmente atomizada. Creio que a chance que temos é o colapso passar a gerar tanto prejuízo econômico que uma ideologia de cooperação nasceria para salvar o próprio capitalismo e, a reboque, o planeta. Algo como: do empreendedorismo para o cooperativismo, partilhar é legal, e por aí vai...
Como disse uma vez num fim de ano que passei em casa: sinta-se só, Virginia, mas não se sinta única. Estamos todos nessa. Fraterno abraço.