É o primeiro dia do neném no recinto. Ainda um pouco confuso com esse novo espaço, ele vai e volta diversas vezes, sempre acompanhado da mãe. Não demora muito para o oncinho se sentir mais confortável com esse universo todo a ser explorado e, com a curiosidade típica de um filhote, se aproximar mais do vidro que nos separa e me deixar vê-lo mais de perto.
O bebê onça-pintada se tornou a sensação do Parque Ecológico da cidade - e não foi à toa. Não contente em ser a coisa mais linda, o oncinho também é atentado que só, brincando com a mãe até ela não aguentar mais. E a gente, aqui do outro lado, falta pouco ter um troço de tanta fofura.
“Por que a gente evoluiu, né?”, solta minha amiga enquanto tenta tirar uma foto do neném. “Imagina poder ser assim e não precisar preocupar com trabalho?”
E faz um bom tempo que venho pensando nisso.
Por que também não somos assim? Por que nossa vida tem que ser tão complicada? E por que não podemos apenas explorar recintos e encher o saco dos outros, que nem o crionço?
Motivação ou utilidade?
Com essa pergunta em mente, começo a reparar em Theodoro, o oncinho, e no que ele apronta em seu dia a dia.
Vejo que ele está lá, brincando com sua mãe, explorando seu novo mundo e causando, para variar. Ele também curte algumas coisas curiosas, como mangas, e se diverte com as opções de entretenimento. E, obviamente, ele não tem boletos para pagar e nem carreiras para se preocupar.
Ele apenas vive, sabe. E não precisa de muito mais do que isso.
Me lembro então de Ailton Krenak e seu livro A vida não é útil, em que ele expressa o quanto essa ideia de propósito e sentido, carregada de utilitarismo, é uma herança direta do colonialismo. Do quanto essa noção de que tudo que fazemos precisa ser útil e produtivo vem justamente da necessidade do lucro desenfreado - que, na real, é incompatível com a vida no planeta.
E é aí que me bate.
Percebo que eu também estou caindo nesse conto do vigário e buscando propósitos que, de alguma forma, encontram obstáculos demais para que qualquer coisa aconteça. Estou condicionando minha vida a algum nível de utilitarismo que, sem me dar conta, é antagônico ao viver em si.
Se viver só faz sentido quando tenho um horizonte pré-estabelecido, é óbvio que vou travar quando ele não parecer mais tão palpável. E se o propósito do que faço está diretamente relacionado ao que me disseram que deveria ser, entendo o motivo de tanta dúvida.
Enquanto eu continuar buscando uma função para os meus dias, sei que não sairei desse ciclo. Enquanto eu continuar buscando utilidade para minha vida, sei que jamais encontrarei paz.
Por isso, pensando em Theodoro, o oncinho, tento deixar as coisas fluírem. Mais do que um sentido, tento mudar a chavinha e buscar apenas o ser, o viver e o criar.
E, olha, o processo não é fácil. Confesso que transformar uma visão tão introjetada dentro da gente é um trem que parece impossível. Até porque, como seres humanos, acho que é inevitável sonharmos com algo a mais.
A grande questão aqui é: por que esse algo a mais precisa ser útil? E por que esse algo a mais precisa ser lucrativo, como se fôssemos um grande negócio?
Penso então no crionço em seu recinto e no que o move. Penso no que o motiva a explorar, a comer, a brincar e a continuar respirando. Penso inclusive se, no fundo, ele também deseja mais, assim como nós humanos.
Mas duvido que ele se preocuparia com as mesmas bobagens que a gente. Duvido que ele dedicaria seu precioso tempo de vida a algo tão bizarro como construir uma carreira ou com quanto ele levanta no supino.
E acho que esse é o ponto: motivação e utilidade, diferente do que nos ensinam, são coisas distintas. E é isso que demoramos tanto a entender.
Uma nova perspectiva
Apesar de um tanto parada nos escritos, essa edição surgiu justamente desse fluxo. Pensar que minha arte ou minha vida não precisam de uma função pré-determinada tem me ajudado a olhar para o meu processo com mais carinho e a me manter caminhante.
Claro que, diferente do que eu gostaria, isso não segue um fluxo linear. Direto eu me pego pensando “de quê adianta?” e buscando utilidade para o que faço, como se eu só pudesse realizar coisas se elas tivessem alguma função para o sistema.
Mas aí eu me lembro de Theodoro. Lembro que ele vai continuar brincando com sua mãe e destruindo tudo enquanto for possível, e até comendo umas mangas de vez em quando. Lembro que, quando chegar a hora, ele vai para uma reserva onde não estará mais em cativeiro, e lá ele vai poder fazer o que bem entender.
Lembro que ele apenas vive. E que isso é mais do que suficiente.
Sei que as coisas não são tão simples assim para a gente e que dá um nó danado na cabeça pensar em realmente fazer o Zeca Pagodinho e deixar a vida nos levar.
Mas e se não fosse tão bicho de sete cabeças assim? E se a gente também pudesse ter a liberdade de viver? Será que as coisas seriam mais simples?
Dificilmente encontrarei essa resposta. Sei que, por mais que tentasse, o próprio sistema não me deixaria encontrar um fluxo verdadeiramente espontâneo e apenas ser, ao invés de consumir. E sei também que, ao tentar simplificar as coisas, um bocado de complicações e frustrações me esperam.
Daí eu penso “o que Theodoro faria?”, e tento imaginar como esse filhote de onça encararia o processo e lidaria com as adversidades. Tento pensar em como esse danado lutaria para se desprender de seus condicionamentos e se ele conseguiria encontrar outras formas de encarar a vida.
E sabe qual é a minha conclusão? É de que não só ele se jogaria nesse caminho de cabeça erguida, como ele também tocaria o terror ao longo do trajeto.
Se eu vou conseguir fazer o mesmo? Duvido. Se eu sei causar com tanta maestria como ele? Jamais.
Se eu vou me inspirar nele mesmo assim e continuar tentando? Com certeza.
Indicações da V
Hoje eu resolvi trazer algumas indicações de leitura também, apontando algumas das news que me cativaram nesses últimos dias. Saca só:
Gostou do que leu?
Obrigada por me acompanhar até aqui!
Me conte nos comentários o que achou desse texto e deixe seu coração pra ele também! Adoro saber que minha arte chega até as pessoas e cumpre seu papel de sementinha.
Lembrando que eu continuo falando umas bobagens lá no instagram, caso queira me acompanhar. Pode chegar que eu vou adorar te receber!
Daí eu penso “o que Theodoro faria?” - vai virar minha nova frase de cabeceira haha!
nossa, eu penso “de que adianta?” com muita frequência. e apesar de já ter largado mão do propósito, sou bem louca com a “eficiência” na minha vida pessoal. rsrsrs
grata pela citação!