Sabe como eu comecei a minha rotinha de caminhadas, mesmo não sendo lá muito fã de me exercitar?
Foi graças ao Twitter. Ou, mais especificamente, graças a falta dele.
Após 13 anos de um relacionamento um tanto tóxico com a plataforma, eu enfim consegui deletar minha conta. E, com o tempo livre que isso me deixou, senti a necessidade de me distrair da vontade de me distrair (e quem tem Twitter provavelmente entende essa sensação). Por isso, resolvi juntar o útil ao agradável e, num dado dia, botei meu tênis furado e fui caminhar aqui pela região.
Passei a sair duas vezes ao dia, pegando o início da manhã e o fim da tarde, de tão empolgada que me sentia com o novo hábito. A paisagem era tão bonita que, muitas vezes, eu só saía para ver o pôr-do-sol ou os quero-queros que ficavam pela grama. E isso me fazia tão bem que eu até peguei gosto pela coisa.
Esse era o momento em que eu me desligava de toda a merda do mundo. Essa era a hora em que eu reparava nas flores e folhas ao meu redor. E esse era o tempo que eu tinha para ouvir meus sentimentos e me sentir mais conectada comigo mesmo.
Eu enfim me sentia viva, sabe?
Não sei dizer quando foi que as coisas mudaram. Não sei quando foi que eu estraguei tudo.
Só sei que, em dado momento, eu me peguei pensando em quantas calorias eu poderia queimar nesse processo e nem prestei mais atenção na paisagem, que tanto me encantava. Deixei de acordar mais cedo para pegar os primeiros raios de sol e passei a me levantar pensando na obrigação de queimar o Burguer King da noite anterior.
E assim, o que deveria ser sobre me desconectar e apenas curtir o momento se tornou uma preocupação besta sobre perder gorduras localizadas. O que poderia ser um hobby que me traria saúde e bem estar só virou mais uma obrigação em nome de um “corpo perfeito”. E o que deveria me trazer prazer só me trouxe mais frustração.
E é sobre isso que eu preciso falar.
Autocuidado ou ilusão?
O meu feed do Youtube, que hoje me apresenta receitas gostosas e reacts totalmente aleatórios, já foi recheado de sugestões de vídeos sobre como ser “aquela garota”. Abusando da estética de uma vida mais simples e saudável, as mulheres à tela me contavam sobre como alcançaram vidas produtivas através de uma rotina de autocuidado.
E eu, totalmente perdida, estava ávida para aprender com elas.
A coisa toda parecia até um roteiro ensaiado: elas acordavam cedo, faziam uma rotina de skincare, tomavam matcha (que eu ainda não sei o que é), se exercitavam, escreviam em seus diários e bebiam muitos litros de água por dia. Minimalismo, mind fullness, low carb e outros tantos termos do tipo eram bastante comuns em todos esses canais.
Mas sabe o que mais me chamava atenção? Sabe o que mais me deixava doida da cabeça ao ver essas rotinas perfeitas e mega saudáveis?
É o quanto parecia real.
A impressão que eu tinha é que, de fato, bastava acordar às 6h da manhã e me entupir de água ao longo do dia para me sentir uma nova mulher. Tudo era tão palatável que, ainda que eu soubesse que não era bem por aí, eu acreditava que ter uma rotina de autocuidado como aquela seria o suficiente para acabar com todos os meus problemas.
E é aí que está o pulo do gato. Porque isso não é sobre autocuidado. No fundo, ser “aquela garota” não é sobre uma vida mais saudável.
É sobre consumismo. É sobre corpos docilizados. É sobre capitalismo.
Diferente do que possa parecer, a rotina de autocuidado não é inteiramente voltada para um bem estar genuíno. Mais do que uma preocupação com práticas saudáveis, é a manutenção do status quo que está nas entrelinhas aqui. E, por mais que seja sempre bem-vindo pensar em saúde, não dá pra negar: tem muito mais do que isso por trás desses hábitos.
Os litros de água e os exercícios diários, no fundo, são sobre emagrecimento e um “corpo perfeito”. A escrita no diário, na real, é sobre limpar sua mente para um foco total no trabalho. O skincare, que é vendido como um “tempo para si”, é sobre prevenir rugas. E a tal vida mais saudável, no fim, é sobre como ser mais produtiva.
Assim, autocuidado se torna apenas mais um produto disponível na prateleira. Apenas mais um lifestyle pronto para consumo que não tem nada de novo em relação aos outros. Disfarçado de bem estar e qualidade de vida, ele vem nos disciplinar para a lógica capitalista de produção e ainda nos culpabiliza por não sermos uma máquina de trabalhar. Afinal, um matcha pela manhã não é tudo que você precisa para se sentir bem?
Mas não importa quantos vídeos no Youtube tentem vender essa ideia ou individualizar uma questão que é estrutural, nós sabemos que o buraco é bem mais embaixo. E, infelizmente, ele demanda muito mais do que acordar cedo para ser resolvido.
Redefinindo conceitos
Confesso que eu entendo o apelo. Porra, eu adoraria resolver todos os meus problemas com um pouco mais de água e afirmações positivas. Imagina ter disposição e motivação para tudo só na base do escrever um diário e fazer um yoga? Caralho, era tudo que eu queria.
Só que, na vida real, ser “aquela garota” não basta. A cobrança social, a infinidade de contas que chegam, o pouco tempo que temos e a energia quase nula que resta após um dia inteiro de expediente fazem até as tarefas mais simples parecerem impossíveis. E é normal que, no desespero por fazer dos dias algo mais do que trabalho, a gente busque nesses estilos de vida a resposta para uma rotina mais significativa. Eu mesma sou a prova disso.
Mas aí é que tá: é preciso entender também a limitação desse modelo. Esse conceito de “autocuidado”, pautado no consumo e na aceitação passiva de uma lógica produtivista, pode até te deixar mais contente por um momento. Mas será que realmente está gerando bem-estar a longo prazo? Ou só está te iludindo enquanto o sistema continua te adoecendo e te culpando por isso?
Não me leve a mal, eu amo um skincare e um yoga. Mantenho diários já faz uns bons anos, e é realmente um trem de doido vomitar as coisas no papel.
Só acho importante apontar que, por mais que essas coisas façam um bem danado, elas não são a solução para tudo. Principalmente quando não nos damos conta de que, diferente do que nos falam, elas só servem para nos manter nesse caminho do “corpo perfeito” e da lógica de produtividade extrema.
E vamos combinar que a reprodução acrítica de padrões repressivos e a cobrança por níveis absurdos de produtividade são o total contrário do bem estar e autocuidado, né?
Acho que esse é o ponto onde eu queria chegar: é preciso questionar esse conceito de “autocuidado” que é baseando em rotina de skincare e dieta low carb. E, mais do que isso, é preciso ressignificar o autocuidado e compreender como ele está ligado a muito mais do que hábitos tidos como saudáveis.
Em uma sociedade totalmente adoecida, cuidar de si é sim fundamental – mas não é o suficiente. Afinal, por sermos seres sociais, dependemos do contato humano para nossa sobrevivência.
Só que, com nosso sistema nos automatizando cada vez mais, é justamente esse toque humano que vai desaparecendo – o que só retroalimenta esse adoecimento generalizado.
Por isso, individualizar o autocuidado dentro da lógica neoliberal é um erro. Quanto mais pensamos que isso é sobre o indivíduo, que é apenas mais um consumidor dentro dessa ótica, mais caímos no conto do vigário de que é o consumo de hábitos e estilos de vida que vão nos tirar desse buraco.
Mas não. É através de práticas de conexão com o coletivo que podemos, cada vez mais, pensar em novas formas de nos cuidar de verdade.
Assim que arte, cultura, socialização e memória se tornam parte do autocuidado. Estudo, organização e consciência politica também. Acesso a lazer e qualidade de vida, momentos de conexão com a natureza e se sentir parte de uma comunidade, definitivamente, também entram na lista de autocuidado. E se permitir ser mais humana e sair dessa lógica de automatização, sem dúvidas, é a principal chave pra tudo isso.
Me vendo com novos olhos
Aproveito meu período de férias para tentar reconstruir meu hábito de caminhar e para olhar para ele sob uma nova perspectiva.
Dessa vez, deixo de lado a necessidade de distração e também tento ignorar a vontade de queimar calorias. Abandono a sensação de obrigação e, aos poucos, relembro o que me motivou a começar esse processo pra começo de conversa.
E é assim que a mágica acontece.
Porque, dessa vez, estou mais preocupada em sair de casa e trabalhar a criatividade através dos pensamentos malucos que me surgem. Focada na possibilidade de respirar novos ares e sentir coisas novas, uso esse momento para me aproximar do verde que me rodeia e também para encontrar pessoas pelo caminho.
Depois de um tempo, eu já tenho alguns conhecidos de trajeto. Cumprimento o senhor que me chama de “simpatia” e também a senhora que sempre leva o cachorro para passear no mesmo horário. Aceno a distância para o homem na bicicleta, que buzina e sorri para todos os passantes, e até encontro uma das vizinhas nesse processo.
Mas não é só isso. É também quando vejo a galera descendo a rua com seus carrinhos de rolimã num fim de tarde de domingo. É quando presencio a criançada maluca com seus patinetes e os pais correndo atrás, como se nada mais importasse. E é, principalmente, quando sinto o cheiro do carrinho de churros, quando ouço as vozes alheias e vejo que existe todo um mundo lá fora, pronto para ser explorado.
Por fim, percebo que é sobre isso. Esse momento é sobre a oportunidade de me sentir parte de um todo. De me sentir viva.
E isso, minha gente, não tem afirmação positiva ou skincare que proporcione.
Continuo também com os litros de água e o protetor solar diários. Ainda acordo cedo, como faço desde a época da escola, e escrevo em meu diário quando sinto a necessidade. De vez em quando, me pego espiando um ou outro vídeo nesse estilo “aquela garota” em busca de alguma receita bacana ou pra ver se descubro enfim o que é matcha.
Mas, se me perguntarem qual é a minha rotina de cuidado, confesso que nenhum desses hábitos é o que me vem na mente.
É meu tempinho de caminhada. Sem sombra de dúvidas.
Gostou do que leu?
Obrigada por acompanhar meu texto até o final!
Me conte nos comentários o que achou desse texto e deixe seu coração pra ele também! Adoro saber que minha arte chega até as pessoas e cumpre seu papel de sementinha.
E em comemoração aos 2 anos dessa news, resolvi assumir o nome que queria para ela desde o início e não tive coragem de usar. Testei títulos que pensei que, de alguma forma, me fariam parecer mais “profissional”.
Mas a real é que a vida é muito curta pra ser levada tão a sério. Então resgatei o nome que guardo desde 2019 e deixei que ele fosse tão besta e caótico quando eu.
Lembrando que eu continuo falando umas bobagens lá no instagram, caso queira me acompanhar. Pode chegar que eu vou adorar te receber!
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o novo nome, amei! Hahaha Nossa, eu concordo contigo 100% contigo, inclusive as minhas caminhadas surgiram muito da observação do espaço e confesso que hoje penso nelas como observação + manutenção do corpo. Eu evito conteúdos sobre "aquela garota", pois nunca cheguei perto de ser (daí virei a engraçada), mas sei o quanto esse papo do autocuidado pode ser mais um pesadelo do que propriamente pegar leve consigo mesma.
Que bom que você se reconectou com as caminhadas e com o nome da news.
Abração!
Maravilhoso, não sei como, mas parece que tenho me conectado com pessoas na mesma situação, existir online se tornou um trabalho não remunerado e exaustivo.
Eu não deletei minha conta no site, mas já tirei do celular o xuiter e esse domingo passei longe e nem vi nada. Em breve apago a conta também
hoje, estranamente, antes de ler o seu texto, me peguei muito feliz. Minha esposa me disse que foi a primeira vez que ela me ouviu dizer isso. Nao foi apenas por estar longe do xuiter, claro, foi uma serie de coisas que aconteceram recentemente (algumas nem boas) mas sei lá, sabe?
Aquela paz, o cachorro vindo correndo na minha direção com o boneco/namorado dele na boca. Feliz. E feliz também de ter lido o seu texto.