Sobre o que escrever quando tudo vai bem?
Só é possível ser criativo quando se está triste?
Por aqui, o ano começou com boliche com os amigos, uma viagem deliciosa de férias, observação de planetas e até dinheiro achado na rua. Eu voltei pra academia, mantive meu yoga maroto, li alguns bons livros, fotografei e passei tempo com quem amo. Foi realmente um bom começo para um ano que promete me trazer coisas boas.
Mas advinha? Eu praticamente não escrevi nada nesse período todo.
Tempo não me faltou, só pra constar. As férias me permitiram não só ficar tranquila nas leituras como até cochilos no meio da tarde eu tirei. Daria pra aproveitar então e botar a newsletter em dia, né?
Pois é. Mas eu não o fiz.
E não só eu não botei nada em dia como também não escrevi uma vírgula sequer. Eu tirei férias até da minha arte, mesmo não tendo esse propósito.
A real é que, durante todo esse tempo, eu senti que não tinha nada a dizer. Enquanto me dedicava à banalidades do cotidiano como um cineminha aqui e um jantarzinho com os amigos acolá, eu não tive o tal ímpeto de escrever. Não veio nenhuma vontade, nenhuma motivação e nem uma justificativa pra isso - e olha que eu adoro escrever.
Por que diabos então eu não aproveitei desse momento pra fazer algo que me faz tão bem? Por que caralhos eu não tirei nem um minutinho pra tentar esboçar alguma coisa entre um cochilo e outro?
Foi aí que eu percebi: eu não tinha nada a dizer porque tudo ia muito bem na minha vida. E, como acontece pra muita gente, eu condicionei a minha escrita à algo terapêutico e catártico. Sabe aquela coisa que você faz pra mandar a angústia embora? Pois é.
O que fazer então quando não sobrou angústia nenhuma?
Uma gênia atormentada (ou não)
“Fulano sempre escreveu em uma cabana no meio do nada sem contato com ninguém”, “fulana escrevia assim porque sofria de uma depressão severa”, “fulane era tão genial que não aguentou esse mundo”. Você também já ouviu alguma história do tipo?
A ideia de que a pessoa que faz arte é sofrida, incompreendida e, por isso, genial, não vem de hoje. Todos nós conhecemos histórias e até nos inspiramos em artistas que, em algum momento, trouxeram o sofrimento como seu grande motor de produção.
E olha, eu sou a primeira a defender o potencial da arte como algo terapêutico nesse sentido. Se utilizar dela para encontrar um escape para o desespero que é viver neste mundo, para mim, é uma das melhores formas de dar vazão aos sentimentos e até mesmo dar mais sentido à eles.
No entanto, chega uma hora em que a relação estabelecida é que, para ser artista, é preciso sofrer. Só produz coisas boas aquela alma atormentada, embebida pela melancolia e pelo vazio existencial. Com isso, o mito de que a genialidade acompanha a angústia nos guia para essa ideia de que só quando estamos mal é que fazemos boa arte.
Inclusive, a nova temporada de Machos Alfa traz isso de uma maneira espetacular. Um dos novos personagens apresentados, Tomás, é um típico artista esquerdomacho e, quando sente que não consegue produzir, diz que é porque está muito feliz. Toda sua história é permeada por essa relação e, quanto mais ele sente que as pessoas não gostam do que ele faz (mesmo dizendo que não é por elas que ele faz), mais ele traz essa relação entre a miséria e a genialidade.
Não é spoiler nenhum dizer que, nesse caso, nem toda miséria do mundo o faria genial. Um pouco mais de maturidade talvez o levasse para um caminho melhor, sem dúvida. Mas é claro que ele prefere acreditar que o que lhe falta é tristeza, né?
Foi muito bom ver Tomás na tela justamente durante esse meu período de férias e tranquilidade. Ao ver esse homem medíocre insistindo que é o vazio que o motiva a criar, eu tive ainda mais certeza que o meu caminho é o contrário. Até porque, vamos combinar, esse clichê só serve mesmo pra que homens continuem sendo imaturos, mimados e, muitas vezes, abusivos.
Por isso resolvi escrever quando tudo vai bem sim, muito obrigada. Afinal, se quero combater o estereótipo masculino do gênio atormentado e incompreendido, a melhor maneira é exercitar a minha escrita não enquanto catarse, mas enquanto vivacidade no cotidiano.
Menos grandiosidade, mais banalidade
Quando comecei a procurar opções do que fazer na minha viagem à São Paulo, uma caralhada de coisas surgiram na tela. Tem esse passeio imperdível, esse restaurante que é um must, tem também esse lugar incrível que você PRECISA conhecer e assim por diante. Eram tantas opções que, sinceramente, eu fiquei cansada só de pesquisar.
Quando enfim chegou a hora de viajar, acaba que eu e meu companheiro não consideramos nenhuma dessas sugestões. Comemos em lugares que nos pareceram legais, vimos uma única exposição durante toda a estadia e o que mais fizemos, no fim, foi ficar de boa no apê que alugamos. Aproveitei pra tirar fotos e ler livros, mas o principal mesmo de toda essa viagem foi curtir a cidade do nosso jeitinho, sem nos preocuparmos com lugares ditos imperdíveis e o caralho a quatro.
Uma das coisas que falei pro meu companheiro sobre tudo isso é que, enfim, eu me permiti curtir as coisas sem me preocupar com sua grandiosidade. Não fiquei focada em fazer com que tudo fosse especial ou aproveitar cada segundo de forma “produtiva”, nem quis saber de programas pré-moldados que só geram é mais ansiedade.
Nem tudo precisa ser especial o tempo todo. Nem tudo precisa ser inesquecível, imperdível, incrível ou qualquer outra coisa do tipo. É justamente aí que as experiências ganham mais espontaneidade e intenção, e é isso que faz com que elas sejam importantes e significativas.
Fiquei pensando muito sobre isso e a tal “genialidade atormentada”. Essa ideia de que o sofrimento é o que nos eleva, além de ser balela, vem também de uma concepção de que, para que seja especial, é preciso ser grandioso. Apenas aquilo que passou por muito perrengue pode chegar ao patamar de “especial” de fato, tanto na história como nas artes. Ou seja, só pode ser bom quem for muito fodido - e quem deixar isso muito claro.
Mas quer saber? Eu cansei dessa noção de sacrifício e sofrimento enquanto um meio para uma falsa elevação. Eu cansei dessa mentira de que só é boa a arte de quem é sofrido (e faz da vida dos outros um inferno). E eu cansei de esperar pela melancolia para poder criar o que quero.
O simples e o mundano também são muito inspiradores. Não é só a miséria que deveria nos mover a criar, mas sim a vivência cotidiana. Afinal, se a arte é a expressão da nossa humanidade, quer coisa mais humana do que o dia a dia?
Eu quero é falar bobagens sem a pretensão de construir uma obra prima. Eu quero é trazer mais vida para o mundo através da minha arte, não o contrário. Eu quero me alimentar de vivacidade e experiências, não de tristeza. E eu quero é que se foda essa genialidade prepotente que aprendemos a desejar.
Que esse clichê fique para os Tomáses da vida, que anseiam pela autenticidade e não poderiam ser mais padrões (e péssimos padrões ainda). Melhor mesmo é se contagiar com o que nos alimenta, não o que nos destrói. E, principalmente, melhor mesmo é criar o que faz sentido, não o que nos dizem que deve ser criado.
Depois de tudo isso, confesso que ainda não tenho o que dizer. Ainda sinto que minha escrita não tem nada de catártico, transformador ou genial.
E eu prefiro é assim mesmo.
Vale a pena ler de novo
Falando sobre a beleza do cotidiano e da simplicidade, eu tenho um texto sobre o assunto a partir do filme Dias Perfeitos. Bora dar uma olhada?
Gostou do que leu?
Obrigada por me acompanhar até aqui!
Me conte nos comentários o que achou desse texto e deixe seu coração pra ele também! Adoro saber que minha arte chega até as pessoas e cumpre seu papel de sementinha.
Lembrando que eu continuo falando umas bobagens lá no instagram, caso queira me acompanhar. Pode chegar que eu vou adorar te receber!
meio doido esse sentimento, eu tenho o Vitória como minha horcrux, então nada nunca está 100% comigo hahaha
eu sinto a mesma coisa. quando estou bem, acho que nada do que escrevo está bom.
nesse final de ano também fiz uma viagem e me permitir não planejar com antecedência nenhum passeio para conhecer locais indicados por amigos. tiveram dias de puro ócio, deitada na rede, sem fazer nada. e foi maravilhoso.
um beijo.