O medo de envelhecer está me deixando pobre
Etarismo, Silvia Federici, Miranda July e eu quase caindo pra trás com meu gasto em cosméticos
Primeiro, um sabonete facial com ingredientes que limpam a pele de maneira gentil. Depois, o sérum de niacinamida, seguido do hidratante com vitamina C que promete um toque seco revolucionário. Daí vem o hidratante corporal, o desodorante que diz ser um “skincare para as axilas” e o creme específico pra área dos olhos, já que os tradicionais não estavam sendo o suficiente. E aí, claro, o protetor solar.
Isso é toda vez depois do banho. Mas durante também tem o shampoo e condicionador, a máscara hidratante, o sabonete de enxofre pra foliculites e o sabonete exfoliante pra usar uma vez na semana.
Ufa, acho que foi tudo, né? Ah não, falta o corretivo, o rímel, o batom, o perfume, os cremes específicos pra mãos e pés e o óleo capilar pro day after. Agora sim, estou pronta para o dia.
Pois é, parece uma pequena odisseia, né? E isso que eu ainda sou um tanto mão de vaca quando o assunto é cosméticos e cuidados, hein.
Pra variar, o mercado cada hora inventa algo mais que precisamos passar, usar ou ingerir para cuidar da nossa saúde e sermos a nossa “melhor versão”. Muito maior entre mulheres (mas cada vez mais comum entre homens também), a tal rotina de cuidados tem ganhado ainda mais passos e exigido uma caralhada de produtos pra que você se sinta bem consigo mesmo.
E tudo pra quê? Pra você adiar os sinais do envelhecimento.
Pois é.
Uma das primeiras edições dessa news foi justamente sobre como nossa sociedade capitalista desvaloriza e desumaniza o envelhecimento, em especial das mulheres, e lucra muita com essa nossa insegurança. Você pode (e deve!) ler essa belezura aqui:
Mas o que me choca não é que o trem ficou ainda pior desde essa edição de 2021. Todos os vídeos de TikTok ensinando o tal do morning shed e a não rir pra não ter rugas, confesso, eu já esperava.
O que realmente me pega é que, mesmo sendo super crítica a toda essa porcaria do momento, ainda assim eu também tô caindo nesse conto do vigário.
E quanto sai essa brincadeira?
Tudo começou quando eu percebi que o meu creme corporal estava acabando e eu teria que pegar um novo.
Naquele mês, por conta do combo psiquiatra + medicação, eu estava cortando todos os gastos possíveis, e o creme me pareceu uma das opções viáveis de cortes. Até porque, porra, 50 conto num creme Dove não dá, né?
Duas coisas me pegaram nesse trem todo: a primeira é que, mesmo em corte de gastos, eu não cogitei passar alguns dias sem creme até o pagamento, mas só trocar por uma opção mais barata. E a outra, que realmente mexeu comigo, é que o famoso Paixão de 17 reais continuou deixando a minha pele macia feito o Dove de 50.
Foi aí que me bateu. Rapaz, o que mais eu peguei de cosméticos que eu poderia trocar por uma opção mais barata? Ou ainda: o quanto eu gasto com esse setor sem nem perceber?
Com isso em mente, comecei a listar tudo o que tinha comprado em 2025 até então. Recorri a extrato e histórico na farmácia pra me lembrar dos itens e fui adicionando tudo numa planilha. E, conforme fui listando os produtos comprados nos primeiros três meses do ano, até achei que tinha alguma coisa errada. Caralho, eu precisei disso tudo mesmo só em coisa de poucos meses meses?
O pior foi ver a resposta dessa conta toda. Imagina meu tombo depois de ver que, mesmo sendo uma pessoa mega econômica e que pensa muito nos próprios gastos, eu já tinha dado praticamente 350 reais do meu suado dinheiro pra um monte de creminho e shampoo?
Fiquei boquiaberta. E, mais do que isso, fiquei um tanto decepcionada comigo mesma.
Claro, tem coisa que não dá pra evitar. Eu não vou ficar o dia inteiro sem desodorante ou deixar de lavar o cabelo, sabe? Eu não vou deixar a pele ressecar a ponto de ter lesões por falta de cuidado. Tem coisas que não tem jeito, a gente vai gastar mesmo.
Mas, ainda assim, 350 conto? E isso ainda sendo mão de vaca?
A escolha que não temos
Como eu sempre acho que vale a pena ler de novo, volto ao meu antigo texto, o Bruxas não usam botox, pra citar um dos motivos de termos tanto medo do envelhecimento:
Velhice e produção desenfreada do capital realmente não combinam muito, e é por isso que os valores dominantes nos empurram tanto a ideia de sermos eternamente jovens. Na tentativa de nos manter o tempo todo como mão de obra explorável, a ideologia burguesa nos coage a continuarmos produtivos a qualquer custo – e, pra ela, juventude é sinônimo de produção.
Além disso, retomo também Silvia Federici e a citação de Mulheres e caças às bruxas que vem no meu texto, pois, afinal, ela resume muito bem toda essa história:
“As mulheres foram aterrorizadas por acusações fantásticas, torturas terríveis e execuções públicas porque seu poder social – um poder que, aos olhos de seus perseguidores, era obviamente significativo, mesmo no caso das mulheres mais velhas – precisava ser destruído. Na verdade, as idosas podiam atrair as mais jovens para seus hábitos perversos e tendiam a transmitir conhecimentos proibidos, como aqueles referentes às plantas indutoras de aborto, e levar adiante a memória coletiva de sua comunidade” (pág. 79)
Retomo esses pontos justamente porque, quando o assunto é tardar os sinais do envelhecimento, isso tem cada vez mais deixado de ser uma escolha e se tornado uma coerção - em especial para as mulheres. Aceitar a velhice seria como aceitar que você já não quer mais o seu papel social previamente estabelecido. E quem você acha que é pra não aceitar a exploração que te é imposta, não é mesmo?
Isso me lembrou inclusive do livro De Quatro, da Miranda July. Quando a personagem principal vai pesquisar sobre menopausa e se depara com os gráficos sobre as mudanças hormonais e o impacto sobre a libido, ela sente que aquilo é o fim. No entanto, conforme pergunta a várias mulheres sobre suas experiências com o período, uma delas diz que foi uma libertação não precisar mais ser desejável.
Ela diz: “todos os hormônios que me faziam querer ser uma pessoa desejável para poder procriar desapareceram e foram substituídos pelos hormônios que protegem minha autonomia e liberdade ferozmente”.
E isso me pegou de jeito.
Porque é justamente sobre isso que essa mulher está falando. A pressão sobre ser desejável (para homens) e cumprir com os papéis sociais atribuído às mulheres está diretamente ligado à juventude e produtividade no âmbito da reprodução social. Uma vez que você perde a sua capacidade de cumprir com esses papéis (que são construídos em torno da fertilidade e juventude), você não tem mais serventia ao capital. E, para a personagem em questão, isso foi uma grande libertação.
Não precisar ser o que esperam dela. Não precisar ser refém dos desejos socialmente construídos e do que sempre a disseram que ela deveria fazer. Ser apenas o que ela sempre quis. Livre.
Em um mundo de botox preventivo e bilionários tentando não morrer, a velhice parece mesmo uma maldição. E não tiro aqui todas as dificuldades envolvidas no período, afinal, é quando nosso corpo está definhando.
Mas será que é realmente uma sentença? Ou é o capitalismo que não olha pra essas necessidades de maneira humanizada porque isso não dá lucro?
Envelhecer pode sim ser um problema. Mas, se olharmos como a amiga da protagonista de De Quatro, será que não pode também ser uma libertação?
Fazendo a minha própria libertação
Pensando nesse caldo todo, resolvi fazer um pouco diferente em 2025.
Óbvio que eu ainda quero me proteger contra o câncer e me assegurar de que não vou ter uma pele afinada e propensa a lesões tão cedo. E sim, eu também quero ser uma mulher cheirosa.
Mas será que preciso mesmo de tudo o que tenho usado nos últimos tempos? Mesmo que eu seja super preocupada com o preço das coisas, será que não é hora de olhar pra parte de beleza com um olhar ainda mais crítico e econômico?
Ao invés de investir em séruns, e se eu investisse em comida de verdade, comprada na feira? Ao invés de pesquisar sobre skincare e investir meu tempo descobrindo os ativos ideias pra minha pele, e se eu usasse esse tempo pra me divertir na cozinha e preparar o que realmente vai me nutrir?
E se eu me preocupasse mais com saúde do que com beleza? Ou melhor: e se eu me preocupasse mais com coletividade e política do que com estética?
Já comecei o movimento de comprar o que tiver de mais barato e funcional na farmácia e pensar mais na minha conta do hortifruti. Já parei um pouco com os vídeos de “melhores ativos pra sua pele” e estou mais na vibe do “receitas veganas que fiz essa semana”. E, além disso, ainda tô fazendo o possível pra manter a rotina de yoga e academia no Sesc, mesmo pecando um dia ou outro.
Anotar os preços dos meus cosméticos não só me fez perceber que eu ainda posso diminuir essa conta e deixá-la ainda mais enxuta, mas também me fez pensar no quanto eu poderia aproveitar esse dinheiro com outras coisas que não o medo de envelhecer.
Os sonhos que ainda tenho a realizar. Os lugares que quero conhecer. As aulas aleatórias que sempre tive curiosidade de fazer, mas nunca tive dinheiro para pagar. Será que agora é a hora?
Será que, ao perceber o quão libertador pode ser o envelhecimento, eu enfim vou me sentir mais livre também na juventude?
Não sei, algo me diz que sim. E, principalmente, algo me diz que, de um jeito ou de outro, ainda vale a pena testar.
Continuo comprando meu creme Paixão de 17 reais e o protetor solar mais barato que puder encontrar. Continuo querendo um couro cabeludo limpo um cheirinho gostoso no meu cangote. Mas quero ainda mais é me sentir tão livre como a personagem de De Quatro - independente da idade.
Que tal um dever de casa?
Se você também sente essa pressão desgraçada de sempre ser uma pessoa bonita e bem cuidada (ou seja, dentro dos padrões), deixo aí a sugestão: o que acha de anotar seus gastos com cosméticos e questões estéticas e ver onde você consegue diminuir esse investimento?
Nem sempre isso será possível, e tá tudo bem. Nem todo mundo vai ficar confortável com isso, e tudo certo. Mas, se você gostar da ideia, quem sabe isso também não te ajuda a olhar pra suas finanças com mais cuidado e a se olhar com mais carinho?
Que a gente consiga ver nossa beleza sem o filtro maldito do capitalismo e nos valorizarmos sem precisar de diversos procedimentos <3
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Obrigada por me acompanhar até aqui!
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Boa reflexão. Eu já liguei o f#*$-s3 faz tempo. Mas alimentação balanceada, higiene do sono, 4L de água por dia e exercício 3x na semana estão impecáveis.
E as meninas de 12 anos fazendo skincare? Filhas de uma amiga.
Se está difícil pra nós, imagine pra quem chega agora. Tenho a impressão de que todas as conquistas da geração das nossas mães viraram pó. Voltamos à estação zero.