Trabalhar durante quatro anos no Sesc me fez ter uma estranha relação com shows musicais.
Graças à função, participei de mais shows do que consigo contar. E, tirando uma exceção aqui e ali (Sepultura, por exemplo), praticamente todos eles seguiram o mesmo protocolo: muitos celulares para cima, muita gente achando que sua filmagem é mais importante que a experiência do colega de trás e muita, mas muita ansiedade generalizada.
E, por conta disso, eu sempre me senti um tanto alienígena nesses espaços. Como se, contagiada por toda essa ansiedade, eu estivesse errada por não curtir o momento através de uma tela.
Inclusive tenho um texto sobre a minha experiência no show do Nightwish, no qual o mar de celulares no ar me impediram de ver o palco por mais tempo do que deveriam.
Mas aí veio o show do Johnny Hooker em plena sexta de pré-Carnaval. E, pela primeira vez em um bom tempo, eu enfim me vi confortável em um espaço como esse.
Embebida na vibe deliciosa que pairava no ar, até demorei a reparar que, na real, o pessoal não estava tão preocupado assim em gravar o palco. Acho que foi só na terceira ou quarta música que vi alguém fazendo um vídeo rapidamente e logo guardando o celular para voltar a pular loucamente.
E, tão acostumada com geral se digladiando para fazer stories pro Instagram, toda aquela espontaneidade e empolgação genuína eram tão incríveis para mim que eu fui arrebatada por elas.
A galera estava totalmente entregue à música, à dança e ao clima maravilhoso de pré-Carnaval. Entre passinhos improvisados e muitas palmas, o público construiu uma experiência coletiva tão linda que até mesmo o Johnny ficou emocionado.
E eu também.
Espontaneidade em tempos de algoritmo
Ao longo dos anos, eu comecei a me incomodar cada vez mais com certos espaços de socialização. Fosse num bar, numa festa ou num show, eu sempre me sentia um tanto estranha perto das outras pessoas, como se ali não fosse o meu lugar. Como se, diferente de todo mundo ao meu redor, só eu não soubesse como me divertir e aproveitar a vida.
Era como se todo mundo tivesse em mãos um script que dizia exatamente o que fazer. Dance assim, beba assado, grave um vídeo desse jeito e goste de tal coisa. Tudo parecia seguir um fluxo muito claro para os envolvidos, menos para mim.
Ainda demorei um tempo para perceber que, diferente do que imaginava, o pessoal também não estava se divertindo tanto assim. Eles continuavam fazendo as mesmas coisas e ainda esperavam pela alegria que lhes foi prometida, mas nunca chegavam nesse resultado.
E foi aí que eu entendi que o script realmente existia. Que as pessoas seguiam uma cartilha, reproduzindo ações e estilos de vida cada vez mais parecidos e padronizados.
Elas só não se davam conta disso.
O capitalismo tardio se aproveitou da nossa insatisfação com o padrão imposto e conseguiu transformar nosso ímpeto de sair da lógica em uma lógica em si. Agora, bombardeados de estímulos pelas redes sociais, somos direcionados a querer uma vida que, ainda que seja diferente da geração anterior, é curiosamente similar para todo mundo.
Mais padronizados e massificados, caímos na ilusão da diferença enquanto ficamos cada vez mais parecidos. Afogados em ideologia neoliberal, seguimos reproduzindo de forma acrítica a lógica das grandes corporações e nem nos damos conta do quanto elas estão sequestrando nossas histórias e moldando os nossos desejos. E, na esperança de calar as vozes nas nossas cabeças, continuamos com o maldito script, achando que ele ainda pode nos ajudar em alguma coisa.
Mas a real é que ele só nos deixa cada vez mais isolados, despersonalizados e vazios.
Nada mais parece autêntico. Até mesmo o que tem cara de espontâneo é, na verdade, uma encenação. Existe cada vez menos espaço para o que é humano e falho e cada vez mais para o automatizado e polido. E, assim, nossos dias acabam perdendo o brilho e fica mais difícil se sentir vivo de verdade.
Ou ao menos é assim na maior parte do tempo. Mas então chega o Carnaval, e tudo isso parece virar de cabeça pra baixo.
Quando a alegria tem outro sentido
Scrollando pelas redes no feriadão, me deparei com uma frase da
que me emocionou demais: “Celebrar a vida também é um ato de resistência”.E, para mim, isso resumiu toda a experiência com o show do Johnny Hooker e o próprio Carnaval em si.
Porque o que tanto me cativou nesses últimos dias foi justamente isso: a celebração da vida em um mundo que fomenta a morte. A comemoração da alegria em uma sociedade que nos quer tristes e imóveis. E, principalmente, o enaltecimento do coletivo em tempos cada vez mais isoladores.
O Carnaval, até quando é meio artificial, consegue tirar da gente uma espontaneidade que nada mais é capaz. Mesmo quando tudo parece meio encenado, existe uma beleza e um brilho que são verdadeiramente admiráveis. E o mais incrível é que, independente se você gosta ou não dessa festa, é inegável o quanto ela exala e nos contagia de vivacidade.
E foi exatamente isso que senti no show do Johnny. Vivacidade. Alegria, coletividade. Encantamento. Sabe essa sensação de que isso sim é vida? Isso sim é pulsão? Isso aqui que vale a pena de verdade?
Pois é. E o Carnaval é a expressão e tradução de tudo isso.
Nesses dias, não consegui pular tudo o que queria. Mas, mesmo do meu sofá, vivi um pouco da folia através dos amigos que compartilharam bloquinhos e me encheram dessa sensação maravilhosa de alegria e espontaneidade que só o Carnaval nos proporciona.
É como diz o texto do Luiz Antônio Simas, ilustrado no vídeo compartilhado logo abaixo:
“É perturbador para certo Brasil - individualista, excludente, sisudo, inimigo das diversidades, trancafiado - lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa e rueira. Tenso e intenso, como lâmina e flor, o Carnaval assusta porque nos coloca diante do assombro da vida”
E esses últimos dias me mostraram que não é só o Carnaval que reacende minha chama e me ajuda a mandar um belo dedo do meio para o tal script padronizante. Não é só essa festa que me mostra o quanto ainda existe espontaneidade lá fora, apesar das redes sociais nos convencerem do contrário. E não é só a folia que me encanta e “me dá Caetano”.
É a vida.
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Lembrando que eu continuo falando umas bobagens lá no instagram, caso queira me acompanhar. Pode chegar que eu vou adorar te receber!
Lindas palavras, é bem assim que a gente vai se moldando até nas coisas mais banais. Sad but true, já diria aquela banda estadunidense.
De uns tempos pra cá comecei a retornar a antigos habitos que viraram cringe ou demodê, como ir em shows, festivais, sair na rua pra tomar um sorvete na esquina e isso tem me deixado um pouco mais feliz. A minha resistência atualmente é tirar fotos dessas atividades só pra mim, preu ver daqui uns anos como eu era feliz e nem sabia, ou sabia e fingia que nao era hehehe
não sou do carnaval, porque não gosto de bloco (multidão, calor, suor, fantasia…), mas reconheço a beleza da farra na rua, a alegria, a espontaneidade. são coisas que fazem falta no restante do ano.