Habitando a internet sem CNPJ
FOMO, influencers, sereias e como até pessoas se tornam negócios
Já contei que eu tenho uma cauda de sereia?
Mesmo estando parada nos últimos tempos, eu sou essa pessoa empolgada com as águas e que, quando viu uma oportunidade, comprou uma cauda e resolveu que queria ser sereia. Afinal, quem não gostaria de nadar livremente e afogar homens desavisados por aí, não é mesmo?
No entanto, me aproximar do sereismo e de sua comunidade me deixou um pouco mais ansiosa do que gostaria. Porque, ao acompanhar outras sereias pelo Instagram e tentar me inspirar em suas vivências, eu me senti totalmente deslocada.
O que eu via não era apenas uma pessoa vivendo seu sonho. Não era só sobre empolgação com os mares e a fantasia sereística. Todos, absolutamente todos os perfis que comecei a seguir eram negócios muito bem estruturados.
Se essa é a profissão da pessoa, nada mais justo que ela investir em seu sustento. Mas o que me pegou de fato foi que, pelo visto, não dava apenas para ter uma cauda e boa. Não dava para nadar com uma lycra nas pernas porque era divertido ou porque parecia algo mágico. O sereismo não era só uma oportunidade de encontrar sua comunidade de desajustados.
Porque ser apenas sereia não era o suficiente. Era preciso monetizar. Era preciso profissionalizar. Era preciso fazer de seu sonho um negócio de sucesso.
Não culpo ninguém por pensar assim, sinceramente. A grande questão é que, com isso, eu também entrei nessa pira e passei a ver meu sereismo como algo errado e insuficiente. Uma ansiedade absurda me tomou e eu senti que precisava fazer como as outras e transformar minha simples empolgação em um puta case de sucesso, meu.
Daí eu fui reparar que esse FOMO todo não vinha apenas quando eu acompanhava outras sereias. Essa ansiedade não me tomava só ao ver seres mitológicos nadando em aquários ou festas infantis.
Isso eu sentia toda vez que abria algum aplicativo e me dava conta de que, no fundo, tudo na internet se tornou um modelo de negócio. E que parece que só você está perdendo por não fazer o mesmo.
Outro dia vi um vídeo em que a pessoa comenta sobre a mudança da internet ao longo dos últimos 10 anos, traçando um paralelo com o começo de seu canal e a realidade atual do projeto.
E é louco como sua fala foi de encontro com o que ando sentindo.
Talvez seja um pouco saudosista da minha parte, mas eu sinto que as coisas eram bem diferentes lá em meados de 2010. Para mim, a internet era esse espaço de criação espontânea e caótica, onde encontrávamos nossos pares e dialogávamos sobre nossas maluquices. Tinha toda essa ânsia sobre o viralizar, mas, mesmo assim, a vibe era outra. A função era outra.
Estar na internet era uma forma de encontrar uma bolha de sociabilidade e criação que o mundo real não me oferecia. E caralho, como eu adorava isso.
No entanto, com a popularização das redes sociais e seu bombardeio de publicidade, as coisas ficaram um pouco diferentes. Com a oportunidade de ganhar dinheiro sem ser através de trabalhos tradicionais, a internet tomou outro rumo e começou a mexer demais com as nossas cabeças.
E, é claro, os algoritmos desenhados para nos adoecer só colaboraram com isso.
Por um lado, eu acho absolutamente fantástico ver tantas oportunidades diferentes sendo criadas graças ao digital. A própria profissão de sereia se popularizou muito graças às redes, e é lindo ver a galera se sentindo tão realizada em suas carreiras.
Mas, por outro, não tem como negar que as redes sociais também foderam muito com a nossa saúde e capacidade de socialização.
O trem ficou tão feio que, se você não tem Instagram hoje, fica até difícil saber o que está acontecendo na sua cidade. Ocupar esses espaços tem se tornado quase que compulsório. Só que, ao mesmo tempo, anda cada vez mais difícil existir nesses meios.
Não só por causa de tanto anúncio, mas também porque até a gente começa a absorver e reproduzir a lógica algorítmica e tratar nossa vida como um grande negócio. Toda foto e toda publicação tem que parecer profissional, mesmo quando não é com isso que trabalhamos. Tudo precisa ser estratégico, mesmo sem qualquer motivo aparente. E todos começam a fazer seu marketing pessoal, ainda que não tenham nada para vender.
Estamos ali, prontinhos para nos tornarmos o próximo influencer de sucesso - e nem nos damos conta disso.
Tudo que consumimos online hoje é feito para parecer simples e espontâneo, quando, no fundo, é totalmente artificial. Tudo é feito para te convencer a produzir conteúdo que, na real, vai virar publicidade. Tudo é feito para te induzir à ideia de que é muito fácil trabalhar na internet e que só você está ficando para trás. E, ao mesmo tempo, esse espaço vem se tornando cada vez mais hostil e desumano.
Olha, é horrível se dar conta de tudo isso. Perceber que uma ferramenta que te trouxe tantas coisas boas passou a te adoecer dessa forma é realmente uó.
Mas sabe o que é ainda pior? Ter noção dessas coisas e ainda sentir que preciso me tornar influencer também.
Cheguei a comentar numa edição passada o quanto percebo que as pessoas não gostam de artistas, mas sim de celebridades. E acho que é esse o meu maior incômodo com o cenário atual.
Sinto que, de alguma forma, se quero um trabalho mais significativo e alinhado com meus sonhos, eu tenho que fazer exatamente isso. Me tornar uma dessas celebridades, criar conteúdo na internet, encontrar o meu nicho e, eventualmente, fazer publicidade para dar conta dos boletos.
Mas, como se isso já não fosse complicado o suficiente, tem ainda mais coisa envolvida. Eu ainda teria que fazer meu marketing pessoal, minha estratégia de produção, me letrar no famoso merchan, fazer com que tudo parecesse espontâneo e, por fim, vender. Vender muito e vender de tudo - mesmo que isso seja bem similar a qualquer trabalho tradicional e nada significativo.
Parece que não tem saída, sabe? Que não dá pra encontrar outras formas de viver e encarar o mundo. Que, mesmo quando se busca uma rotina diferente, caímos na mesma lógica vazia e desconfortável de sempre.
Então por que ainda assim me parece tão tentador?
É tudo muito contraditório e confuso. Por um lado, vejo a galera viajando horrores, fazendo coisas incríveis, tendo rotinas cheias de propósitos e vivendo vidas super aesthetic. Por outro, é tanta gente vendendo curso de como vender curso que só me mostra que esse espaço está decaindo e se distanciando cada vez mais do seu antigo potencial.
No fim, é tudo sobre performance. Mais do que o que você é, é o que você aparenta ser que importa.
Só que, mesmo assim, eu continuo nesse FOMO desgraçado e sem qualquer perspectiva de melhoria. Eu continuo nessa ilusão besta de que trabalhar com internet é o caminho para me sentir mais livre e realizada.
Sabe de nada, inocente.
Me dá até tristeza de pensar, mas eu tive a coragem de postergar um conserto na minha cauda de sereia por um ano e meio.
Era um simples problema na nadadeira. Eu só precisava de um velcro mais resistente, nada mais. Mas, por algum motivo obscuro, eu sempre pensava “amanhã eu resolvo” e esse amanhã nunca chegava. Eu estava com tudo pronto em casa, era só sentar e fazer o trem acontecer. E, ainda assim, eu não conseguia.
Acho que algo em mim não queria voltar a ser sereia. Com medo de ter que me moldar ao que via desse sereismo de negócio, eu preferia ter a desculpa de que não conseguia usar minha cauda do que admitir que estava intimidada demais com esse universo. Preferia ver meu sonho encostado do que encarar a verdade de que, no fundo, eu não sabia ser uma sereia como as outras.
Daí, numa noite em que eu estava empolgada com arrumar coisas, eu simplesmente peguei essa danada e consertei o que precisava na famosa gambiarra. Meti uma cola quente, colei um novo velcro por cima e, em menos de 15 minutos, eu já estava com minha nadadeira nos pés de novo.
E eu amei a sensação.
Às vezes a gente se esquece que as redes são estrategicamente desenhadas para nos deixar doentes. Às vezes, tão absortos nessa lógica maldita, nos esquecemos de que existe todo um mundo lá fora que não precisa funcionar do mesmo jeito. E que, de vez em quando, a gente precisa mesmo de um choque de realidade pra se lembrar de que o que existe no virtual é apenas isso: virtual.
Fora das telas, as sensações são palpáveis e deliciosas. E, apesar de gerar uma ansiedade desgraçada também, aqui fora eu posso simplesmente fazer as coisas por fazer. Sem propósito maior, sem plano de ação e nem estratégia de marketing. Apenas eu e o meu desejo - e isso basta.
Volto à piscina do Sesc com minha nadadeira e faço o que me dá na telha. Confesso que não tenho lá muita técnica, então meu nado ainda é um pouco sofrido. Minha respiração fica ofegante, e saio da água cansada e com dores nas canelas onde eu nem achei que poderia doer. Mas não é que, mesmo toda desengonçada assim, eu me divirto do mesmo jeito?
Percebo o quanto o meu sereismo ainda é falho, amador e nada parecido com um negócio em potencial. Aliás, toda a minha vida segue o mesmo rumo e não tem nada de muito aesthetic assim.
E que bom. É assim mesmo que eu quero que seja.
Não sei o que me espera para 2024. Não sei se esse ano vai ser de maior tranquilidade ou se o trem vai pegar fogo (alô, ebulição global) e me deixar ainda mais ansiosa. Não sei se esse FOMO todo vai embora ou se, no fundo, eu vou continuar idealizando carreiras e acreditando que a grama do vizinho é mesmo mais verde que a minha.
Só sei que, pelo menos por agora, eu não quero me importar com isso. Hoje eu quero mais é deixar esse negócio falir e dar espaço para a espontaneidade. Hoje eu espero apenas que a vida me permita continuar tentando, caindo e me levantando - e me divertindo nesse processo.
Ao menos por hoje eu só quero mesmo é ser falha e amadora quanto possível.
E isso já é mais do que o suficiente.
Um pequeno adendo
Acho que minha vontade de ser sereia veio forte, de fato, lá em 2015. Meu primeiro salário eu gastei com um pé de pato de brinquedo que eu esperava transformar num monofin, só pra você ter uma ideia. A cauda mesmo veio só em 2022, mas, aos poucos, acabei deixando essa empolgação de lado.
E não é que essa edição me trouxe esse brilho no olho de volta?
Escrevi esse texto no começo de dezembro, quando mexi na minha nadadeira e voltei a me empolgar com ela. Daí, no fim do mês, eu ganhei um presente maravilhoso do meu companheiro: um monofin lindo e muito eficiente.
Já tenho brincado com ele lá na piscina do Sesc e amado essa nova relação com o sereismo, que voltou à vida justamente a partir dessa edição <3
Gostou do que leu?
Obrigada por me acompanhar até aqui!
Me conte nos comentários o que achou desse texto e deixe seu coração pra ele também! Adoro saber que minha arte chega até as pessoas e cumpre seu papel de sementinha.
Lembrando que eu continuo falando umas bobagens lá no instagram, caso queira me acompanhar. Pode chegar que eu vou adorar te receber!
tenho sentimentos conflitantes em relação às redes sociais também. ao mesmo tempo em que acho ótimo manter contato com pessoas que estão distantes e saber mais do que os amigos andam fazendo, tenho pavor da enxurrada de publicações feitas para vender que nos são empurradas goela abaixo.
Tem um termo quando a gente fala de influencer e criador de conteúdo que me pega muito, "empreendedor de si mesmo". Eu acho que as redes reforçam demais essa lógica de que absolutamente qualquer coisa que ponhamos no mundo (inclusive filhos kk) pode virar uma linha de conteúdo e portanto uma oportunidade de negócio. Lógicas de mercado e negócio não permitem falhas e descompromisso estético... o quanto a gente puder ficar de fora, melhor. Me identifiquei com vários pontos do texto, e feliz por essa sereia que se reencontra!