Vendo o meu tempo passar
Uma reflexão sobre ansiedade climática, estagnação e novas possibilidades (e Priscilla, A Rainha do Deserto)
Não faz muito tempo que ouvi o termo “ecoansiedade” pela primeira vez. E, para minha tristeza, ele descreve com maestria o que venho sentindo desde a adolescência.
Para se ter uma ideia, eu fui a menina que levava sua ecobag para o mercado lá pra meados de 2009, quando isso nem era tendência ainda. Preocupada em fazer a minha parte, eu acessava um site da Abril para contabilizar minhas sacolas plásticas recusadas e me orgulhava de utilizar papel reciclado nos cadernos da escola, achando que isso era o suprassumo da consciência ecológica.
E veja, eu não fazia isso por conta de uma conexão mística com a Terra ou um amor idílico pela natureza. Eu queria frear a destruição ambiental, e jurava de pé junto que essas ações eram o suficiente para isso.
Até então, catástrofes climáticas eram tratadas apenas como uma possibilidade abstrata de um futuro distante. Até então, quem se preocupava muito com essa história era alarmista e “contra o progresso”.
Mas, para mim, essa possibilidade estava longe de ser abstrata. O colapso iminente do planeta me era tão real que colocou uma espécie de contagem regressiva em minha experiência no mundo e me fez pensar que, apesar da pouca idade, eu não tinha muito tempo restante.
Tomada por essa urgência angustiante de quem vê seu tempo acabando, eu sentia que precisava realizar e conquistar tudo para ontem. Fosse algum sonho maluco, a graduação do momento ou a conquista de certos confortos na vida, eu não queria passar pelo processo demorado de construção. Ou melhor, eu não achava que tinha tempo suficiente para isso antes de o planeta se tornar uma bola de fogo mortal. Então, na minha cabeça, eu precisava fazer as coisas acontecerem, e eu precisava que fosse pra já.
E é óbvio que isso deu muito ruim para o meu lado.
Medo de tudo, medo do nada
Não é novidade que paciência nunca foi o meu forte. Mas, ao menos agora, eu consigo dar um nome para isso. E indo um pouco além, consigo também mensurar e entender o motivo que fez com que minha vida fosse uma série de tentativas, mas poucas realizações: o medo de não ter tempo.
Afinal, por que me preocupar em conquistar um diploma se daqui a pouco estaremos lutando por água potável? Por que construir uma carreira se, em pouco tempo, minha profissão não vai fazer diferença alguma e talvez até deixar de existir? Por que pensar em patrimônio quando ele provavelmente vai acabar em fogo logo menos?
Esse tipo de diálogo habitou minha cabeça ao longo de todo o meu desenvolvimento. E, na ânsia de frear um pouco dessa angústia existencial, pensei que a melhor resposta era encontrar modos de vida mais significativos e menos materiais.
Por isso, ao invés de dedicar meu tempo escasso em trabalhos enfadonhos e carros do ano, me convenci de que a resposta era sair por aí e viver experiências únicas. Construí toda a minha perspectiva de vida pautada no sonho de viajar o mundo em um motorhome e fazer arte, na certeza de que isso sim valeria a pena.
Eu só não esperava me sentir totalmente paralisada até nesse sonho. Mesmo considerando este o grande mote da minha vida, até nisso eu não sabia por onde começar e nem como prosseguir.
Apesar da vontade, o medo ainda era maior. Mesmo querendo tanto botar meu pezinho na estrada, eu era invadida por todas as possibilidades desse sonho dar errado e pelos problemas que poderia enfrentar ao longo dele, ainda mais sendo mulher. Com isso, me sentia tão apavorada com a hora de agir que, no fundo, nunca tirei essa ideia do papel.
Contrariando todas as minhas expectativas, meu lindo e precioso tempo não foi aproveitado como eu gostaria. E, por fim, minha juventude se resumiu a empregos que detestava, contas a pagar e sonhos inacabados.
Quem diria, não?
A real é que, quando tudo o que se espera é um mundo em declínio, fica difícil aprender a concluir qualquer coisa. E com o meu sonho de viajar o mundo, infelizmente, não foi diferente.
Por conta disso, eu não terminei nenhuma graduação até então e também não viajei por aí. Não dediquei meu tempo escasso à uma carreira tradicional, mas continuei com medo de tentar qualquer outra coisa diferente. E o que fiz ao longo dos meus vinte e tantos anos, veja bem, foi viver de um pagamento ao outro, apenas sonhando em sair dessa inércia maldita.
É curioso pensar que, no fundo, o medo de não ter tempo de aproveitar a vida foi exatamente o que me impediu de realizar grandes coisas. Apesar do receio de viver o que eu não gostaria, eu acabei fazendo exatamente isso e não me joguei em nada do que queria.
Irônico, não?
Um corte exposto em seu rosto, amor
Outro dia, inspirada na estreia do musical brasileiro, reassisti Priscilla, A Rainha do Deserto. E é até engraçado pensar que, esperando cantar e rir muito com minhas cenas favoritas, acabei não me preparando para a enxurrada de lágrimas que vieram com os créditos.
Mais sensível com tudo o que tem rolado mundo afora, fui arrebatada pela narrativa já conhecida e por toda a coragem em viver a própria verdade que revi nas personagens. Apesar dos pesares, elas persistem na jornada pelo deserto em nome da arte que tanto as representam e, principalmente, vão perdendo o medo de serem quem são e de se apoiarem em seus pares.
Ao final, quando Mitzi e Felicia estão se apresentando ao som de ABBA, eu me vi dançando, cantando e chorando loucamente. Fiquei emocionada em vê-las voltando para casa e performando para uma plateia verdadeiramente engajada com o número.
E, mais do que isso, eu senti que também estava ali com elas.
Era como se fosse comigo também. Como se, de alguma forma, eu estivesse dentro daquele ônibus, cruzando o deserto australiano com aquelas queens. Era como se eu tivesse feito trilhas in drag, me apresentado com todas aquelas roupas e, principalmente, voltado para casa totalmente transformada.
Só percebi depois que, no fundo, isso era sobre realização. Toda a minha emoção veio de acompanhar aquelas artistas vivendo seus propósitos, mesmo depois de tantos percalços, e da minha vontade de sentir o mesmo. As lágrimas, mais do que uma resposta ao quanto a narrativa desse filme me é incrível, foram também uma expressão do meu desejo visceral de, enfim, fazer alguma coisa sem medo.
De também encontrar meu espaço no mundo para exercer minhas paixões. De acordar cheia de emoção e propósito. De me dar ao direito de sonhar alto e não sentir que preciso pedir desculpas por isso.
O medo de não ter tempo o suficiente, no fim, me tirou a oportunidade de viver muitas jornadas. Já desisti de muita coisa no meio ou antes mesmo do início, pensando que estaria desperdiçando minha vida com o processo. E olha que curioso: hoje eu vejo o quanto eu poderia ter feito diferente se tivesse menos medo. Hoje vejo o quanto eu poderia ter aproveitado minha vida e sentido essa realização que tanto busco se tivesse me preocupado mais com o trajeto e menos com a chegada.
Só que agora, como vemos diariamente nos jornais, as consequências da crise climática estão batendo à porta. Tudo o que temi na adolescência começa a tomar forma e as catástrofes se tornam cada vez mais frequentes. E, com tudo isso rolando, faz ainda mais sentido me perguntar: e agora, será que ainda tenho tempo?
E eu, nesse mundo assim
Quando mais nova, um dos meus sonhos daquelas listas de “coisas a fazer antes de morrer” era recriar a cena de Priscilla, A Rainha do Deserto em que Felicia dubla opera em cima do ônibus, arrasando em trajes prateados.
Sempre achei um tanto icônico como, em pleno deserto australiano, ela simplesmente resolve fazer um número tão incrível para ela mesma. Mesmo com o ônibus pichado com “aids fuckers go home” na lateral, que é de uma violência tamanha, a sua forma de lidar com isso é fazer sua arte assim, sem amarras e sem maiores pretensões. Apenas uma voz de soprano, roupas fabulosas e sua vontade de torrar a paciência de Bernadette já são o suficiente para um número sem igual - e cheio de significado.
Ao rever a cena dessa vez, me lembrei desse sonho do começo da vida adulta e percebi que, ao contrário do que imaginava, ele não era tão literal assim. Poético e simbólico, esse meu desejo vinha, na verdade, da vontade de experimentar algo muito maior do que apenas ópera e roupas cintilantes.
E não se engane, isso também é sobre ópera e roupas cintilantes. Mas é muito, mas muito mais do que isso.
Esse desejo vem, na verdade, da liberdade que essa cena representa. Vem da forma com que Felicia se dedica à sua arte e se encontra nela, sem medos e sem poréns. Vem da diversão em se permitir fazer algo tão impensável quanto cantar no teto de um ônibus em movimento simplesmente porque sim. E vem também da transformação da dor em algo maior e mais potente, sem espaços para se desculpar por ser quem se é.
Hoje entendo o que está por trás desse sonho e dessa cena. E, mais do que isso, entendo também o que preciso fazer pra que ela se torne realidade. Sim, a crise climática chegou e o mundo já está nos seus finalmentes. O tempo está acabando, e agora não é mais só uma paranoia minha.
E acho que é por isso mesmo que uma chavinha mudou por aqui e agora tenho encarado esse processo de uma outra forma. Olhando mais como uma oportunidade do que uma sentença, quero é aproveitar para fazer o que sempre quis nos meus vinte e poucos e usar o tempo que me resta, enfim, de maneira significativa.
Esse me parece o momento perfeito para me livrar dos medos e das desculpas. Me parece a hora exata para aproveitar a vida, sem mais projetos inacabados ou contagens regressivas.
Afinal, em época de fim dos tempos, a melhor hora dublar ópera no topo de um ônibus é agora, não é mesmo?
Indicações da V
Chega de referências bestas a Alvorada Voraz, do RPM (aliás, você reparou isso nos títulos desse texto?). Então bora de indicações de edições que me encantaram desde a última publicação!
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Obrigada por me acompanhar até aqui!
Me conte nos comentários o que achou desse texto e deixe seu coração pra ele também! Adoro saber que minha arte chega até as pessoas e cumpre seu papel de sementinha.
Lembrando que eu continuo falando umas bobagens lá no instagram, caso queira me acompanhar. Pode chegar que eu vou adorar te receber!
Nossa, me identifiquei muito com a reflexão sobre ecoansiedade. Por muito tempo, tive uma pressa absurda de realizar tudo imediatamente, antes dos 30. No caso, comigo, era por ser mulher e achar que, depois disso, meu prazo de validade "expirava" - vejam só. De qualquer forma, hoje como ativista climática é impossível não ser tomada por esse sentimento, sobretudo experenciando o que vivemos no Rio Grande do Sul. Mas vamos lá. Ainda tenho esperança. A escrita me dá um gás. A regeneração, também. <3 Tem que ter um jeito.
adorei, estou finalizando um texto que tem muita relação com essa reflexão. Vou colocar o link do seu texto, mas não sei se vou conseguir fazer direito pq ainda sou ruim na ferramenta rs